Cavaleiro

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Os créditos da ilustração são de André Marques - www.andre.art.br

A religião é inocente

Por: Ivani de Araújo Medina*

Se no tempo da pedra lascada houve uma convenção intercontinental das tribos para combinar a existência dos deuses, eu não sei. No entanto, posso afirmar que Deus é uma invenção recente. É produto da cultura urbana e de interesses maiores do que a compreensão do homem primitivo. Cultura é invenção. Não importa se o homem imenso de barba branca que inventou o céu, as estrelas, o mundo e a Humanidade, se a energia da inteligência criadora que governa o universo, se o Logos dos gregos, nada importa. Deus não criou nada, foi criado.
Essa criação sofisticada tornou-se crença obrigatória, não pela religião como muita gente pensa. A religião faz parte das manifestações culturais, como: língua, hábitos alimentares, costumes, arte, instituições, códigos, etc. Enfim, tudo o que um grupo humano cria como solução às próprias necessidades e confere a ele uma identidade que se relaciona com a produção, transmissão e perpetuação do saber. Isso se chama cultura. Tudo invenção, ou melhor, o melhor resultado que através do tempo aquele grupo conseguiu. Cada um é aquilo que lhe foi possível. Sublinhemos o fato de que religião não era a cultura de grupo algum, mas parte dela.
Cultura alguma se desenvolve linearmente, o dinamismo próprio da criatura humana não o permite, existem os outros. Lógico, tinha que ter alguém para dizer: o meu é muito melhor! Ainda que o desempenho do próprio grupo estivesse em desvantagem. Quando havia interesses comuns os grupos acabavam se fundindo, quando não, o pau comia. Gregos e persas viveram entre tapas e beijos. A Humanidade parece que sempre viveu em casa de vila. Falaram-se mal ontem, mas hoje se sorriem. Essa é a regra porque somos seres interdependentes.
Sabemos que quando existem regras, existem também exceções. Fique tranqüilo, prezado leitor, não vou repetir aquela história de gregos e judeus. Não há mais necessidade. Porém, justamente, estes últimos eram a exceção. Perdão, mas é isso mesmo. Enquanto o resto do mundo ainda cultuava os deuses, estes escolheram uma determinada estirpe a cultuar, simbolizada por um único deus. A originalidade deles estava na idéia de que esse deus era ciumento e havia transmitido pessoalmente um conjunto de leis que deveriam ser rigorosamente cumpridas. Assim, com o passar do tempo, esse grupo consolidou uma política religiosa que dirigia seus passos.
Na religião original o homem se alternava entre a vida profana e o momento sagrado. Sagrado significa “o que pertence aos deuses”. Havia o espaço sagrado apartado do mundo profano, em respeito à distância existente entre o Homem e seus criadores, no qual o contato imaginário se realizava. Já o deus dos judeus, que foi colocado acima de todos os outros deuses, não permitia que seu protegido se apartasse em momento algum do compromisso assumido com ele. Estava em todo lugar de olho no eleito. Não haveria para os seus uma vida profana, somente uma vida santa. Santo significa “separado”.
Desse modo a cultura judaica, com o seu modelo de crença organizada, distinguiu-se fundamentalmente das outras culturas. Era inamistosa porque a sua natureza assim exigia. Ao se estabelecer, a primeira providencia foi livrar aquele grupo da influência religiosa antiga e dos seus adversários profanos. Era uma verdadeira revolução ideológica que contemplava um grupo ainda em formação. Outra novidade fundamental unificava a autoridade jurídica e religiosa lhe reservando o poder civil. Religião alguma existia assim.
A conclusão é que fica difícil classificar o judaísmo como religião. Quando o fator religioso reveste uma cultura, não se apresenta mais como uma das suas manifestações, significa que estamos diante de uma cultura religiosa e não mais de uma religião. Quando esse modelo foi incorporado pelos gregos, surgiu o cristianismo e, do cristianismo, o islamismo. Judaísmo, cristianismo e islamismo nunca foram religiões vitoriosas, como se acredita. São culturas religiosas e nasceram de um arrojado projeto político-religioso a se executar. Com efeito, é ilusão pensar na possibilidade de suas modernizações, pois o conceito de legalidade que os inspirou é eterno. As leis divinas mudarão jamais, segundo eles.
Deus é invenção da cultura religiosa e não da religião. Esse modelo recente na história e as suas versões respondem por todas as perversidades, desgraças e sanguinolências contra a Humanidade. A religião é inocente.

* Ivani é historiador do cristianismo e colaborador do Programa de Estudo das Religiões da UERJ/PROEPER.

Referências
ELIADE, Mircea, O sagrado e o profano. [tradução Rogério Fernandes] São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JOHNSON, Paul. História dos judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
LARAIA, Roque de Barros, Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
TOYNBEE, Arnold J., A Religião e a história. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

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