Por: Ivani de Araújo Medina*
O ódio é um sentimento natural. Odiar, como reação, é uma necessidade de extravasamento, portanto, é saudável. Existem outros sentimentos mais bonitos, mas nem por isso mais humanos do que este. Na Antiguidade odiar não era feio. Para os gregos antigos compartilhar do ódio de um parente, de um amigo ou o da própria cidade era um dever. Era um dever de família, de amizade e de civismo. No entanto, a constatação dos prejuízos de toda ordem causados pelo ódio, levou o Homem a tentar o auto-aprimoramento. Foi a busca por mais espaço em si mesmo para sentimentos estéticos, mais confortáveis e produtivos que fez surgir a filosofia ou o amor a sabedoria.
Todavia, esse sentimento matreiro também se serve do amor para se manifestar. Seja do tipo que for o amor, não se livra dele facilmente. Esse fantasma emocional assombrou o mundo helênico com suas guerras fratricidas impossibilitando a união nacional dos antigos gregos. Milênios se passaram e o mundo mudou muito. Astutamente, às mudanças, sobreviveu justamente o ódio gerado pelo amor ao helenismo e, de forma dissimulada, engana até hoje.
A cultura helênica era amada e cultuada orgulhosamente pelos seus. Com as vitórias alexandrinas se estendeu com sucesso ao resto do mundo. Sofreu influências porque o helenismo não era refratário, ao contrário, absorvia sem dificuldades a experiência estrangeira sempre acrescentando algo de seu. Isso era uma particularidade grega, remodelar sempre. Dessa forma ia conquistando mais adeptos do que adversários.
Assim foi até que um dia o helenismo perdeu a paciência com um povo cuja cultura rejeitou seus encantos. Tal sentimento de rejeição calou fundo na alma helênica. Era como se todos os pequenos ódios pessoais se unissem num ódio enorme, na luta contra os “inimigos da Humanidade”. Assim os gregos passaram a identificar os judeus. A negativa judaica de deixar-se fundir ao ideal universal helenístico acabou fazendo do tradicional ódio grego um bem cultural, uma arma implacável contra o judaísmo e queria a sua eliminação.
A versão potencializada e nacionalizada desse sentimento era transmitida de geração a geração. Quando os romanos dominaram o mundo grego mais uma preocupação apertou-lhes a alma. Judeus e romanos se davam bem. Receavam que naquela situação seus privilégios e a amada cultura se perdessem na barbárie. Para agravar um pouco mais, os judeus, que não se casavam com não-judeus, proliferavam com intensidade e o proselitismo que praticavam estava surtindo efeito. Até os gregos menos afortunados só se tornavam meio-convertidos porque repudiavam a circuncisão, mas as mulheres ─ são elas que criam os filhos ─ cada vez mais participantes.
O ódio que vinha se arrastando desde os séculos anteriores, no primeiro século da Era Comum, estalou com fúria incontida. Escritores gregos, num trabalho de propaganda negativa, jogavam os populares contra os judeus com histórias chocantes. Os dominadores romanos que assistiam a disputa sem tomar partido, tiveram que intervir inúmeras vezes para manter a ordem pública. A guerra romano-judaica de 66-70/3 foi o episódio mais sangrento que esse ódio promoveu. Ex-escravos gregos conseguiram altos postos no governo imperial e nomearam parentes e patrícios para cargos lucrativos, inclusive, o de procurador da Judéia.
Os romanos foram usados como um aríete contra os portões do judaísmo. Os judeus eram bons pagadores de impostos e não queriam a guerra. Porém, convertidos menos cultos e mais pobres, como os galileus, eram usados como massa de manobra para provocar o conflito e a possível aniquilação do judaísmo com a destruição da sua principal referência ─ o templo. Essa guerra devia chamar-se Greco – judaica, pois resultou da disputa entre o helenismo e o judaísmo pela hegemonia cultural no mundo antigo. Ambos tinham influência em Roma, tanto sobre a população quanto sobre o governo.
Os gregos se sabiam dotados para a reversão da própria sorte. Haviam acumulado e praticado conhecimentos como nenhum outro povo. O contato com o Oriente fora-lhes auspicioso e não se limitava mais a experiências de alguns dos seus soldados aventureiros, porém a experiência alargara de grande parte daquele povo. Os gregos se mudavam para terras distantes e lá se estabeleciam numa vida nova, rica, farta e ainda mais culta, na qual se reproduziam sem perderem o orgulho de continuarem como verdadeiros filhos da Hélade. Estavam por todo o mundo... Mas os judeus também. A chamada guerra Romano-judaica espalhou-os ainda mais.
Na criação do antídoto contra o judaísmo (o cristianismo) o antigo ódio grego encontrou a sua dissimulação perfeita no enredo da novela dos evangelhos. Os gregos criaram um herói salvador da Humanidade perfeitamente identificado e um algoz anônimo, mas igualmente identificável ─ o povo judeu. Condenaram um povo inteiro a um sofrimento perpétuo. Esse ódio travestido de amor vem rolando como uma bola de neve ao longo do tempo adoçado pela filosofia. Quanto mais distante da sua origem e da consciência das suas motivações, mais perigoso ele vai ficando.
O ódio ideológico não é natural, é doente, portanto. Oferece contradições descabidas que a filosofia não dá conta, por isso fica difícil de entender. De “inimigo da Humanidade” o povo judeu passou a “assassino do salvador da Humanidade”, ou seja, tentou roubar a única chance dela. Não pode haver crime pior ou maior do que este, capaz de despertar um profundo rancor. O percurso desse ódio foi apagado do tempo pelo poder da beleza tirânica de uma história que nunca existiu. O sagrado não admite indiscrições.
A perseguição cultural converteu-se numa perseguição religiosa e as chances do homem comum compreender o que se passava se reduziram ainda mais. O medo inculcado pela religião o fazia ceder à solicitação dos orientadores cristãos. Passou a odiar os judeus por obediência, depois por reflexo, e finalmente por tradição. As crueldades da Idade Média, as humilhações e restrições de todas as épocas seguiram seu curso. No século dezenove quiseram expulsar o povo deicida da Europa. Mais uma vez, os judeus sofreram de tudo por causa disso. A única saída seria adquirirem terras em algum lugar onde pudessem viver em paz. A nostalgia clamava por Jerusalém. “Ano que vem, em Jerusalém”.
No final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a Grã-Bretanha e a França pediram aos árabes que se levantassem contra o Império Turco-Otomano. Em contrapartida ofereceram a independência a eles. A Síria e o Líbano tornaram-se protetorados franceses e o Iraque, a Palestina e a Jordânia protetorados britânicos. Enquanto isso os judeus sionistas atuavam junto aos britânicos e franceses tendo em vista a formação de um estado judeu. Em 1932, o Iraque torna-se independente; em 1943, o Líbano; em 1944, a Síria; em 1946, a Jordânia. Mas a Palestina não obteve a sua independência porque já estava prometida aos judeus. E os palestinos com isso? O crescimento do ódio dos árabes devido à deslealdade ocidental não demorou em se converter no ódio islâmico. São muitas as nações islâmicas atualmente e o islamismo penetra cada vez mais no Ocidente.
O clima de pânico havia se espalhado mundo a fora com as ações terroristas. Os meios de comunicação noticiavam sem esclarecer a opinião pública, resvalando nos contextos da atualidade sem meios de penetrar na questão. Enquanto isso, o personagem principal, o antigo ódio grego, que nunca esteve na mídia e nunca deixou de dar crias, se ria das falsas questões. Ódio que fez com que os judeus fossem tangidos ao longo da história até reconduzi-los de forma mais inesperada àquela região do Oriente médio, da qual foram expulsos pelo mesmo motivo depois da destruição do templo, no primeiro século. Repare aonde aquela bola de neve veio chegar!
Muito se comenta a respeito das barbaridades que os judeus cometeram contra os palestinos antes, durante e depois da fundação do estado de Israel, do interesse do capitalismo naquela região, das atividades econômicas lícitas e ilícitas dos judeus, etc., mas nenhuma palavra se ouviu até hoje sobre a verdadeira causa que desencadeou toda essa brutalidade. Enquanto isso os filhotes daquele ódio oculto e milenar estão cada dia mais rechonchudos com os novos conflitos.
Outro detalhe de importância nessa história é que, com o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a revelação dos campos de extermínio causou grande comoção na cristandade. Os judeus souberam aproveitar aquele momento de sensibilidade dos seguidores da crença que os condenara ao sofrimento perpétuo. No século anterior, os queriam fora da Europa, e no século vinte, se compadeciam deles. Assim sendo, uns poucos judeus se dispuseram compor com cristianismo, afinal, Jesus Cristo, que nunca existiu, “era” judeu. A lógica disso é que a triste lembrança do holocausto deixaria os judeus mais protegidos e o judaísmo em evidência no seio das sociedades cristãs.
Isto posto, fica fácil entender o motivo pelo qual já se pode encontrar teólogos judeus escrevendo sobre a positividade do Novo Testamento e, até mesmo, aceitando a existência do Jesus histórico ao sentirem o perigo islâmico nos calcanhares. O argumento básico deles é simples: a verdadeira autoridade na interpretação religiosa não está em nenhuma liderança cristã. Como Jesus Cristo nasceu, viveu e morreu no judaísmo, por conseguinte, a autoridade no assunto é inteiramente judaica.
Com habilidade eles tentam se livrar das conseqüências do antigo ódio grego. Sabem que podem dar a volta por cima e assumir o controle. Por isso mesmo, oficialmente, nenhum judeu desmentiu a história de Jesus cristo. Jamais o fariam porque a população cristã mundial está estimada em 2.2 bilhões de indivíduos. A população islâmica, em crescimento, em 1.8 bilhões e a população judaica, difícil de ser mensurada, em 14 milhões de indivíduos. Uma cifra que não deve corresponder à realidade, mas as proporções podem ser consideradas, pois os números exatos são de um valor relativo aqui no meu texto. No entanto, o entrelaçamento de interesses, certamente não.
Não podemos deixar aberta a porta que trouxe do passado para o presente esse ódio travestido de amor e facilitou suas calamitosas conseqüências. Foi assim que o fio da meada acabou se perdendo na consciência ocidental, a pesar das tentativas frustradas da filosofia de remediar a questão. A história não procura por culpados porque sabe que a Humanidade é vítima de si mesma. Seu papel é, também, iluminar o caminho percorrido pelo seu objeto de estudo e mantê-lo sob seus holofotes para que não seja mais perdido de vista. Portanto, a história não deve permanecer como serva de ideologia alguma, ainda que, eventualmente, o esforço para a sua reconstrução possa assumir tal aparência diante dos olhos do preconceito.
Como dificilmente nos livraremos do ódio e das nossas antipatias ocasionais, ao menos, conhecendo um pouco melhor o percurso que descreveram na história, talvez possamos oferecer a possibilidade de dias melhores àqueles que ainda não experimentaram a aventura da vida.
* Ivani é historiador do cristianismo e colaborador do Programa de Estudo das Religiões da UERJ/PROEPER.
Nenhum comentário:
Postar um comentário