Por: Adílio Jorge Marques
É possível fazer da restrição da liberdade civil a condição para a liberdade de espírito de um povo? Kant coloca no seu profundo texto “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?” questões procedimentais do homem na busca de seu esclarecimento (“Aufklärung”) enquanto ser, e que ele define como sendo algo da sua época. A análise a partir do qual, logo no início do texto, Kant nos diz que “a preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens,…, continuem… de bom grado menores durante toda a vida”, indica que para se atingir o progresso, o esclarecimento, algo deverá ser feito pelo buscador.
A tendência dos homens e mulheres é manterem-se na inatividade, inertes e centrados na busca do que entende ser o melhor, mas apenas para si e não para toda a comunidade. Kant afirmava que os homens chegam mesmo a “criar amor” por sua menoridade, e que mesmo as fórmulas do uso racional são “grilhões” para se manter os homens nesse estado. Kant, porém, diz que a liberdade é um fator que pode tornar perfeitamente possível o esclarecimento.
Vejamos. Todos podem alcançar as luzes sobre qualquer assunto, embora a grande maioria, segundo Kant neste texto, não queira praticar ou desenvolver tal condição moral, seja por comodismo, oportunismo, medo ou preguiça. Em seu processo social de formação todo indivíduo vive uma situação de menoridade em algum momento ou fase de sua vida. Aqui, a menoridade é natural, pois se confunde com imaturidade, talvez como a imaturidade da semente em relação à árvore que ela pode vir a ser, já que nenhuma pessoa nasce pronta. Kant questiona aquelas autoridades, como as religiosas, que através do medo ou do constrangimento aprisionam os sujeitos em menoridade quando já teriam condições intelectuais de não estar nessa situação.
Logo, ser esclarecido não é apenas ter um "profundo" conhecimento sobre algum assunto, mas unir tal passo com a conquista da autonomia – este sim, um passo moral fundamental, mas apenas dado por uma minoria dos homens. Todos, potencialmente, podem "esclarecer-se", já que possuem capacidade de pensar, mas nem todos conseguem superar o medo, a preguiça ou o interesse particular para alcançar a condição de esclarecimento. Ou podem adiar tal condição. Kant apenas adverte que não cabe a renúncia ao esclarecimento, de si e principalmente dos demais, pois seria “ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade”.
A questão da liberdade aqui surge como exigência para o esclarecimento. Temos a liberdade mais inofensiva, e que é o uso público da razão. E neste ponto começa a notar-se uma resposta à questão acima, quando Kant nos coloca: “Qual limitação não impede o esclarecimento, mas o favorece?” O filósofo nos responde que é no uso público da razão humana, que sendo sempre livre, levará a luz para entre os homens. Ou seja, quando um homem tenha atingido um grau de sabedoria fará assim uso de sua razão para um público já letrado, o que Kant chama de “verdadeiro público”. Ou seja, o mundo levando a sociedade a uma melhor condição, tal qual aquela que ele mesmo atingiu.
A obediência aparece como necessária para que um governo funcione nas suas atividades para o povo, mantendo desta forma organizado o Estado em suas finalidades públicas. Kant descreve os exemplos da obrigação do sacerdote em fazer seu sermão, ou quando o cidadão não deve recusar a pagar seus impostos, ou mesmo o subalterno que não deve questionar as ordens militares de seus superiores. Existe uma ordem lógica kantiana para se chegar racionalmente na liberdade.
Temos a liberdade de criticar as coisas em relação às quais estamos aptos pelo saber, porém, somente quando se vive uma condição de autonomia funcional, condição para o uso público moralmente aceitável da razão. Ressalva-se que, enquanto sábio em seu agir, tem também o dever, e é sua obrigação, em fazer conhecer do público quando surge o erro em seu âmbito de atuação.
A obediência à razão verdadeira de Kant não afasta o esclarecimento, apesar de parecer que ele demonstre a existência de “tutores”, e com isso, de uma hierarquia funcional entre os homens. Tais sabedores de suas funções tiveram a liberdade de atingir este estado, e continuam com a liberdade de passar ao mundo seu conhecimento com a atuação da verdade e da razão.
Em relação direta à questão proposta acima, talvez seja possível fazer da restrição da liberdade civil uma condição para a liberdade de espírito de um povo. Kant mostra a obediência e a hierarquia que muitas vezes surge como um fator para a manutenção da ordem pública. Isso nos faz pressupor que a educação seja a maneira de se manter em cada ambiente, em cada situação, as condições para que os homens e mulheres atinjam o esclarecimento de seu ser e que transbordará para o restante do povo (mundo). No antepenúltimo parágrafo Kant escreve: “Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado”.
O próprio Kant enxergava que não seria lícito a um Estado livre ousar a sair de uma dessas condições – o que ele mesmo chamou de “um paradoxo”: quando um povo tem um grau maior de liberdade civil surgem limites que ele chama de intransponíveis, obediência a regras e leis para que a ordem seja mantida. Os homens públicos através do seu saber são marcadamente atuantes.
E um grau menor a liberdade civil permite o espaço para uma maior expansão das atitudes do povo, guiados que são pelas regras e pela obediência a elas. A maior restrição permite o controle do estado vazio ou insuficiente de razão. Kant acredita que, neste último caso, o povo seja cada vez mais capaz “de agir de acordo com a liberdade”, chegando mesmo a atuar no governo do Estado através dos princípios que o mantém. Isso porque o homem chegou a um novo estado de si: ele é esclarecido, e não mais uma simples máquina.
Talvez Kant queira mostrar também, com tal frase, a última do texto, que apesar de vigorar na Europa de sua época a idéia de que tudo poderia ser explicado e determinado com a razão e o saber científico, o homem teria condição de ser colocado em uma posição diferente na escala natural. Com a possibilidade de
Devemos ousar saber (sapere aude), segundo Kant!
*Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência no mundo luso-brasileiro e história das Tradições.
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