Por: José Luís Cardoso
Domenico Agostino Vandelli nasceu em Pádua, em 1735, cidade onde igualmente concluiu a sua formação universitária nos domínios da medicina e da história natural. Através dos seus primeiros livros, escritos em latim, através das notícias que mais tarde deu das colecções de objectos e espécies destinados ao seu museu privado e, sobretudo, através da correspondência que manteve com Carl Lineu, confirma-se a sua vocação de naturalista atento ao desenvolvimento científico em curso na Europa ilustrada de meados do século XVIII. A boa fama que certamente obteve junto de alguns cientistas e literatos portugueses que na época viviam em Itália, terá estado na origem do convite que lhe foi feito pelo Marquês de Pombal para que se estabelecesse neste país. Assim aconteceu, no ano de 1764, integrando uma comitiva de outros professores italianos contratados para leccionar matérias científicas (matemática, química, física e história natural) no Real Colégio dos Nobres. Esta experiência pedagógica fracassou, dada a baixa apetência da aristocracia portuguesa em proporcionar formação científica adequada aos seus descendentes. Todavia, Vandelli e os restantes professores italianos acabariam por se fixar na cidade de Coimbra a partir de 1772, preparando e dando execução à reforma iluminista dos Estatutos desta Universidade.
Vandelli leccionou em Coimbra as disciplinas de química e de história natural, fundou os respectivos Laboratório e Museu e colaborou na criação do Jardim Botânico daquela cidade. Em 1779 e anos precedentes participou activamente na criação da Real Academia das Ciências de Lisboa, podendo considerar-se como um dos principais mentores da acção da Academia no domínio económico. Os textos que publicou na colecção de Memórias Económicas, bem como os diversos manuscritos que nos legou, permitem confirmar o papel ímpar que este “falso estrangeiro” desempenhou no desenvolvimento das doutrinas e políticas económicas e financeiras em Portugal nos finais do século XVIII.
Os escritos de Vandelli destacam-se de forma nítida por entre a abundante literatura de teor económico produzida sob a égide da Real Academia das Ciências. Da sua pena saíram textos programáticos e orientadores do que viria a constituir-se como um dos mais importantes núcleos documentais para o estudo da economia e do pensamento económico português na fase final do antigo regime.
A sua preocupação básica foi a de incentivar a elaboração - a que também ele próprio se dedicou - de um inventário rigoroso dos recursos naturais existentes e potencialmente utilizáveis para fins produtivos e comerciais, quer na metrópole, quer nos domínios ultramarinos. As propostas de realização de viagens filosóficas ou os incentivos que através da Academia procurou criar para a elaboração de memórias descritivas locais e regionais, foram instrumentos concebidos com essa finalidade de criar elementos de diagnóstico que permitissem o delinear de uma estratégia de afectação óptima dos recursos disponíveis.
Por vezes, a sua abordagem reveste um carácter meramente descritivo e naturalista, limitando-se a anotações de classificação segundo o sistema de Lineu. Outras vezes, Vandelli ultrapassa essa simples descrição naturalista e centra a sua análise nos obstáculos físicos ou morais (isto é, naturais ou sociais) do desenvolvimento do sector agrícola, ou ainda nas condições que tornariam possível uma utilização eficiente e sem desperdício dos recursos naturais, humanos e técnicos, tanto na produção como na circulação de produtos e matérias primas. Esta componente de diagnóstico é coerentemente acompanhada de propostas de reforma e melhoramento que configuram uma opção estratégica de desenvolvimento económico do país tendo por base a agricultura.
Tal estratégia é delineada por Vandelli numa das suas mais célebres memórias, com o sugestivo título de “Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas”, publicada no Tomo I das Memórias Económicas da Academia das Ciências. Vandelli procede neste texto a uma crítica ao sistema de proteccionismo manufactureiro seguido em França por Colbert, crítica esta que também deverá ser lida como uma avaliação negativa da congénere política económica pombalina. Também apresenta os seus argumentos a favor de uma maior liberdade de comécio interno e externo como meio de garantir a redução do preço dos bens agrícolas. Mas o que melhor caracteriza o seu texto é a aposta inequívoca numa orientação agrarista da política económica, à qual se subjugaria o processo de desenvolvimento fabril. Conforme esclarece Vandelli: “As fábricas que merecem a maior atenção são aquelas que fazem uso das produções nacionais; mas estas também devem ser proporcionadas ao número de gente que tiver a agricultura (…). O sistema de fábricas deve ser relativo à situação do país, à sua actual agricultura, às suas produções naturais, e aos diferentes ramos do comércio, que se podem fazer com as ditas produções nacionais, e com a indústria” (Vandelli 1770-1804, 149 e 152).
O agrarismo vandelliano apresenta algumas semelhanças com o discurso económico produzido pelos fisiocratas franceses. Nalguns momentos, Vandelli chega mesmo a advogar uma concepção da produtividade exclusiva da agricultura: “As produções da terra são a única e verdadeira riqueza, e a cultura dela o único princípio da sobredita” (148); e também se aproxima do conceito fisiocrático de bom preço: “Em proporção do valor dos frutos a terra será melhor trabalhada e em consequência as colheitas mais abundantes” (148). Mas ficam por aí as suas incursões no terreno teórico cultivado pelos discípulos do autor do Tableau Économique, demonstrando apenas a sua receptividade em relação à visão da actividade económica que tinha como eixo e motor o sector agrícola.
A importância do texto de Vandelli que temos vindo a referenciar não decorre apenas da clareza expositiva com que o autor apresenta as suas orientações em matéria de doutrina e política económicas. Vale também pela forma como reflecte o objecto de inquérito e o programa de reformas subjacentes ao conjunto de textos publicados na série de Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa.
A partir do ano de 1791, e após a sua jubilação da Universidade de Coimbra, Domingos Vandelli pôde acompanhar mais de perto os trabalhos da Academia. Mas a sua atenção voltou-se também para outros horizontes. Em Lisboa passou a exercer os cargos de Director do Jardim Botânico da Ajuda (que aliás havia fundado e no qual trabalhara antes de se instalar em Coimbra em 1772) e de Deputado da Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (para a qual fora nomeado em 1788). A sua proximidade da corte vai proporcionar a oportunidade de afirmar os seus méritos como observador e analista de assuntos de âmbito político, diplomático e financeiro, ao mesmo tempo que contribui para empalidecer a sua já então contestada fama de botânico e naturalista. Esta nova etapa da sua vida revela, por conseguinte, uma mudança no objecto fundamental dos seus estudos: ao ciclo de escritos de carácter descritivo e de análise dos problemas estruturais com que se deparava a economia portuguesa, sucede-se um novo ciclo de escritos em que Vandelli surge a discutir temas de acesso reservado a um público mais vasto, com destinatários restritos, opinando sobre a condução da diplomacia externa portuguesa e esboçando propostas de reorganização financeira.
Num conjunto vastíssimo de memórias e pareceres que redigiu nos anos de 1796 e 1797 – os quais se mantiveram inéditos até 1994 – Vandelli dá conta da sua preocupação perante o envolvimento português nos confrontos de guerra e de resistência às pretensões hegemónicas francesas. A participação de tropas portuguesas nas campanhas do Roussillon e Catalunha e os riscos de um alastramento dos conflitos e palcos de guerra, justificavam a antecipação de reformas que viabilizassem o financiamento dos gastos militares adicionais. Tal era o pretexto para as sugestões de Vandelli sobre contenção de despesas supérfluas, sobre a racionalização da administração financeira, a elaboração de orçamentos e a melhoria dos sistemas de arrecadação fiscal, e ainda sobre o lançamento de novos impostos e a ampliação das fontes de rendimento da coroa através da alienação de uma parte dos seus próprios bens.
As reformas propostas por Domingos Vandelli denotam alguma sintonia com o programa de saneamento fiscal e financeiro delineado e executado por D. Rodrigo de Souza Coutinho. Uma diferença, porém, viria a revelar-se dramática para Vandelli: a sua mal disfarçada simpatia pró-francesa que lhe custou a expatriação e o exílio em 1810, após a expulsão dos franceses do nosso país. Regressaria ainda a Portugal em 1815 para morrer neste seu país de adopção no ano seguinte, mais de cinquenta anos volvidos desde a sua primeira entrada.
A desgraça a que o velho Vandelli foi votado no final da sua vida não fez esquecer a obra pioneira que no nosso país desenvolveu em prol do conhecimento das suas características e potencialidades económicas.
Referências
Vandelli, Domingos. Aritmética Política, Economia e Finanças (1770-1804). Lisboa: Banco de Portugal, 1994 (Colecção de Obras Clássicas do Pensamento Económico Português).
Vandelli, Domingos. Memórias de História Natural. Porto: Porto Editora, 2003 (Colecção Ciência e Iluminismo).
Cardoso, José Luís, 1988. Os escritos económicos e financeiros de Domingos Vandelli. Ler História, nº13, 31-51.
Cardoso, José Luís, 2003. From Natural History to Political Economy: The Enlightened Mission of Domenico Vandelli in Late Eighteenth-Century Portugal . Studies in the History and Philosophy of Science. Vol. 34:4, 781-803.
Serrão, José Vicente, 1994. Introdução a Domingos Vandelli, Aritmética Política, Economia e Finanças (1770-1804). Lisboa: Banco de Portugal (Colecção de Obras Clássicas do Pensamento Económico Português).
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