Por: Adílio Jorge Marques & André Vinícios Dias Senra.
Introdução
A proposta de abordagem da temática ‘científica’ em Aristóteles tem a ver com o fato de que foi este pensador quem originou um vasto campo de investigações racionais, a tal ponto de a maioria das ciências modernas disporem, como pressupostos, das referências dos trabalhos de Aristóteles. E isto se verifica, inclusive, no modo como Aristóteles utiliza a linguagem de modo, digamos, “objetificante”, e que termina por influenciar o tipo de escrita denominada científica. Assim, pois, em uma época da história do pensamento ocidental em que a admiração e o assombro predominavam e eram tratados como motivos para a investigação racional, Aristóteles se diferencia de outros gregos, pois, sua explicação é contida, seu estilo de escrita é ‘seco’ e não possui aquela tendência de poetizar o conhecimento. Os escritos de Aristóteles, por exemplo, não possuem a beleza de imagens que os estilos de Platão ou de Parmênides proporcionam. A concepção aristotélica do conhecimento estava mais para uma categorização de certos aspectos do real, do que propriamente para a configuração de um modelo científico com características do período moderno. Neste trabalho, pretende-se compreender o sentido da concepção aristotélica acerca do conhecimento. E, sobretudo, pretende-se mostrar que há uma hierarquia entre conhecimentos que foi estabelecida por Aristóteles, onde a forma de conhecimento superior é a denominada como Filosofia Primeira. A ciência é, para este filósofo, um modo de reconhecimento da causa pela qual esse algo é e, este algo, apresentando certa característica, não pode ser de outro modo. Assim, o conhecimento, para Aristóteles, é definido em termos de relações causais e necessidade. No entanto, nesta concepção sobre Filosofia Primeira, existe mais platonismo do que se supõe usualmente. Texto publicado no Congresso Scientiarum Historia/2008.
Discussão
Costuma-se dizer que o aparecimento do termo ‘Metafísica’ para designar o conjunto referente aos quatorze manuscritos que constituem o título do livro homônimo do Aristóteles não foi assim denominado pelo próprio filósofo. O título deste livro não pode ser atribuído ao próprio Estagirita. E isto porque este jamais teria usado esse termo em nenhum de seus escritos para referir-se à Filosofia Primeira. Muito embora, esta obra tenha ficado famosa com este título, e seja considerado um dos mais importantes tratados de Filosofia já escritos até hoje. Isto se deve a que tal conjunto dos escritos de Aristóteles permaneceu perdido desde a sua morte (estimada em 322 a .C.), até o primeiro século antes de Cristo, quando, então, reapareceu e foi editado por Andrônico de Rodes. Segundo a versão corrente, Andrônico teria denominado tais escritos aristotélicos como pertencentes à Metafísica por razões meramente editoriais. Assim, por uma questão de ordem cronológica entre os escritos, os ensaios sobre Filosofia Primeira deveriam ser após os estudos da Física. Contudo, filosoficamente, parece mais plausível considerar que a opção de Andrônico pelo termo “Metafísica” foi porque, etimologicamente, este nome quer dizer àquilo que ‘ultrapassa a física’ ou a consideração filosófica em prol da transcendência dos objetos naturais a partir de sua causa material. Tendo como referência, o modo como Aristóteles classificava a hierarquia entre conhecimentos, pode-se concluir que a Filosofia Primeira deveria tratar daquilo que vai além da física, daquilo que a transcende. Assim, pois, a idéia da Filosofia Primeira, além de receber o nome de Metafísica, também deve ser entendida como a noção aristotélica de ‘ciência’ teórica por excelência. As finalidades da Filosofia Primeira são pelo menos quatro: (a) o conhecimento das causas ou princípios primeiros; (b) o conhecimento do ser enquanto ser; (c) a indagação sobre a substância; (d) a indagação sobre Deus e a substância supra-sensível. De qualquer modo, sabe-se que o termo Metafísica seria equivalente à idéia de Filosofia Primeira.
O objeto do qual se trata a partir da referência ao termo filosofia primeira, é o supra-sensível. Por supra-sensível, se entendem as formas puras, análogas ou semelhantes às Idéias platônicas. O estudo do Ser enquanto Ser foi denominado de Filosofia Primeira, e, posteriormente, na época moderna, foi denominado como razão pura. Este estudo consiste na análise das formas separadas dos aspectos materiais. Em Aristóteles, a metafísica já pode ser considerada como um saber que mantém proximidade com a idéia de mereologia, ou seja, a relação do todo com as partes. E isto porque Aristóteles procura desenvolver um modo de integração da filosofia pura em composição com aspectos realistas.
A abordagem metafísica é, geralmente, associada com a dimensão religiosa da experiência humana. E ainda que seja possível utilizar tal abordagem para esta finalidade, isto não indica que necessariamente esta seja a característica do pensamento metafísico, tal como este pensamento tornou-se alvo de muitas críticas, por vezes, infundadas em muitos autores contemporâneos ligados à perspectiva científica. É fato que a metafísica possui uma parte de sua história como sendo relacionada aos aspectos medievais (um dos doutores mais representativos do pensamento cristão, Tomás de Aquino, foi responsável por esta assimilação da filosofia primeira de Aristóteles pela Igreja Católica). Mas isto não caracteriza que o estudo ontológico sirva apenas ao propósito da religião, e não da ciência. O conhecimento das causas ou princípios primeiros é um tipo de investigação que foi intentada pelos pré-socráticos, que buscavam um princípio racional que estabelecesse certo finalismo em relação à filosofia grega da natureza, ou seja, que pudesse ser tratado como o motivo causador e mantenedor da ordem do universo. Este é o sentido do estudo da physis no pensamento grego, ou seja, a busca por uma analogia que comportasse, em um esquema racional, o imutável e o devir, ou a unidade e a multiplicidade.
Como tudo o que é da ordem natural está sujeito às modificações em seu aspecto material, daí se conclui que este princípio primeiro ordenador do mundo não poderia ser material. Caso o princípio de ordenação fosse sujeito à mudança, não haveria sentido em considerar que a ordem deveria ser necessariamente permanente. A ordem pode ser identificada como a razão ontológica das coisas. A permanência é tida como característica essencial da ordem. Tanto que um dos escritos de Aristóteles sobre a mudança recebe o nome de corrupção, em clara analogia platonista entre aspectos naturais e aspectos morais-políticos, ambos pertinentes ao que é sensível. O tratamento aristotélico dado ao conhecimento metafísico indica que este é o mais difícil porque seus objetos, sendo os mais universais, constituem aquilo que se encontra mais distante dos sentidos. Contudo, convencionalmente, a crítica que se estabeleceu quanto ao conhecimento metafísico é de que este teria a função de condicionar e inviabilizar o conhecimento de toda a realidade sensível. Isto não é verdade. Se observarmos a filosofia da natureza na Grécia Antiga, veremos que vários pensadores estabelecem tanto princípios puros, bem como sensíveis. Desde os mais associados com a filosofia pura, como Pitágoras, Platão e Plotino, até os mais realistas como Aristóteles, ou os atomistas como Demócrito, são todos pensadores que tematizam estes dois tipos de princípios em suas filosofias. O que varia é o projeto filosófico de cada um deles, ou seja, a finalidade com que cada um atribui um valor a estes princípios nas respectivas filosofias. Talvez, o problema é que na Grécia não havia um modo adequado de unificar estes princípios através de um método. Tanto que este problema só aparece com força na época moderna. Na filosofia aristotélica, o objeto da metafísica interroga tanto a filosofia primeira na busca por um fim universal, quanto pode se referir a um fim particular sobre o real. A pergunta por um ente singular indica que a metafísica abrange, inclusive, o que pertence ao domínio científico-natural, pois, se considerarmos que as ciências investigam o mundo entitativo, subdivide-se em regiões (ontológicas) singulares do ente, e chamam o ente de objeto de estudo metodológico. Para Aristóteles, o conhecimento material sobre o ente indica o estudo dos acidentes. O acidental seria o mesmo que o contingente, por isso, a posteriori. A filosofia primeira seria o estudo da necessidade a priori. Portanto, metafisicamente, o ente, ou nos termos de Leibniz, o ser do ente, vem ao encontro da nossa experiência como algo em geral, que não assume nenhuma determinação, pois, isto seria a objetivação de um particular. Nesse sentido, o ser é o mesmo que pensar em um gênero. Por esta razão, Aristóteles é considerado um autor ‘científico’, pois, em sua consideração sobre a Filosofia Primeira, existe a possibilidade (ainda que não tenha sido realizada pela falta de um método) de integrar o supra-sensível e o sensível.
No entanto, Aristóteles achava que a filosofia primeira é, dentre as ciências, a mais nobre e superior, pois ela não depende de qualquer aplicação prática, sendo o motivo para a investigação metafísica um puro e desinteressado desejo de saber advindo daquilo que o homem tem de mais essencial, que é o uso de sua razão e inteligência. A indagação sobre o ser enquanto ser, nos leva à questão dos vários sentidos do ser (acidental, verdadeiro, falso, potência e ato, categorial), e esse modo de questionar nos conduz ao ser por si mesmo, o ser da categoria de substância. A indagação sobre a substância, por fim, deve conduzir à questão de se saber se só existem as substâncias sensíveis ou se existem também as substâncias supra-sensíveis. A questão do supra-sensível teve início quando Parmênides começou a investigação sobre o ser e concluiu que o ser é Um. Para Aristóteles, o ser se diz de múltiplos modos. A multiplicidade da qual Aristóteles fala refere-se à variedade com que podemos observar os aspectos do mundo entitativo. Todavia, Aristóteles parece enxergar o perigo existente nesta multiplicidade, na medida em que a diversificação, sem uma referência, conduziria à involução do conhecimento.
“Para todo e qualquer ente, para todo ente de toda e qualquer significação, há o movimento que conduz ao surgimento e o movimento de recondução para algo assim como Um.” (ARISTÓTELES, Met., 1061, 1982).
Parece que esta interpretação sugere que a unidade do ser é a unidade do conhecimento, bem como a sua multiplicidade se caracteriza como referência à diversidade dos aspectos do mundo entitativo.
A tematização da Filosofia Primeira de Aristóteles na condição de ciência que investiga o ser enquanto ser, indica uma orientação que procura identificar as mais universais características da realidade ou do ser, ou ainda, este projeto filosófico está voltado para a identificação das categorias ou espécies mais gerais das coisas. A especificação do que distingue esses tipos, ou categorias, uns dos outros, e a identificação dos tipos de relação que ligam objetos de diferentes categorias entre si são as tarefas pertinentes à investigação sobre a Filosofia Primeira.
No início do livro E da Metafísica, Aristóteles nos fala que existem três tipos de entes, estudados cada qual por um tipo diferente de saber: a) as que possuem existência substancial separada, mas estão sujeitas à mudança (física); b) as que estão livres da mudança, mas que existem apenas como aspectos possíveis de distinção nas realidades concretas (matemática); c) as substâncias que possuem, simultaneamente, existência separada e estão livres da mudança (metafísica). Por esta razão, a Filosofia Primeira pode interrogar o objeto da metafísica tanto no sentido universal quanto em relação ao particular determinado, pois, apenas na metafísica eles são teoricamente conciliáveis.
Conclusões
Uma vez que a idéia aristotélica de conhecimento seja referente ao real, contudo, ainda assim, comporta certo tipo de necessidade. A necessidade não é um item natural, mas ideal, pois, não se pode vê-la em um sentido empírico. Ficando evidente que a “Ciência” de Aristóteles precisa admitir o mundo externo, ou seja, que se encontra baseada em uma concepção de realismo robusto, de outro modo, esta concepção só pode encontrar sustentação em um saber puro que a justifique. Para Aristóteles, este deve ser o posicionamento teórico que todo e qualquer conhecimento deve ter como fim a ser alcançado.
Referências
Aristóteles, Metafísica, trad. Valentin G. Yebra, Madrid, Editorial Gredos, 1982.
Mansion, A. Filosofia primeira, filosofia segunda e metafísica em Aristóteles, in Sobre a Metafísica de Aristóteles, Marco Zingano (org.), trad. Marisa Lopes, pp. 123-176, São Paulo, Odysseus Editora, 2005.
Peters, F.E. Termos Filosóficos Gregos – Um léxico histórico, trad. Beatriz Rodrigues Barbosa, Lisboa, Calouste Gulbenkian.
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