Cavaleiro

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Os créditos da ilustração são de André Marques - www.andre.art.br

A matematização da natureza

Por: Adílio Jorge Marques


INTRODUÇÃO

Descartes legou para o futuro da ciência a sua tentativa de "geometrizar" a natureza. Quais os motivos, contudo, que levaram a uma “matematização” no estudo da natureza no modernismo? Qual a importância da participação de alguns grandes nomes das ciências físicas e matemáticas da época?

Inicialmente, lembremos que a visão de mundo relacionada ao movimento da Terra em torno do Sol levou a algo tão importante que mudou o mundo e a ciência. Foi algo que também levou Giordano Bruno à fogueira e Galileu à prisão domiciliar. O estabelecimento do heliocentrismo evidenciou-se com os estudos de observações da natureza feitas por Copérnico, Kepler, Tycho Brahe, coroadas também pelas teorias matemáticas de Galileu Galilei e Isaac Newton. Coube a este último fazer a grande síntese da mecânica e da gravitação unificando a física do céu e da Terra, explicando por uma mesma teoria os movimentos planetários em torno do Sol e o movimento dos corpos na Terra.

Segundo T. Kuhn, em sua obra “A Estrutura das Revoluções Científicas”, determinados processos se repetem ao longo da história, possivelmente de maneira intermitentemente e, desta forma, abrem sempre novas formas de pensar, rompendo paradigmas. O pensador Alexandre Koyré usa a expressão “matematização da natureza” tanto para o alinhamento de pensamento platônico desde Pitágoras (passando por Platão até Aristóteles), quanto para a revolução científica galileana na linha histórica de pensamento Galileu-Descartes-Newton, variando apenas a potencialização da racionalidade promovida por esta matematização. Ambos são momentos históricos e filosóficos diferentes, nos quais o homem passou a ver a natureza como uma espécie de livro que poderia ser descrito pela matemática.

Vemos com isso que nossa visão da natureza muito se relacionou à visão racional grega, como mostrado na linha de pensadores acima. As antigas questões espirituais e filosóficas, como “Quem sou?”, “Onde estou?”, “O que é o ser?”, “O que é o mundo?” ainda movem paralelamente a ciência e os homens na busca pelo conhecimento.


IDÉIAS GERADORAS DO MÉTODO CIENTÍFICO

O método de Francis Bacon foi importante para a ciência moderna, consistindo essencialmente em observar os fatos, existindo duas formas de se buscar a verdade. A tradicional, indo direto dos sentidos aos axiomas gerais, como indicava a indução aristotélica; e a proposta baconiana de recolher os dados dos sentidos ascendendo contínua e gradualmente até alcançar os princípios da máxima generalidade. Bacon valorizava o desenvolvimento das artes mecânicas, defendendo a busca controlada das causas para obter os efeitos desejados. Com isso abriu um largo caminho para os pensadores que se seguiram. Escreveu ele no seu “Novum Organum” que o homem só poderia ampliar o conhecimento descobrindo a ordem natural das coisas através da observação e da razão, pretendendo assim estabelecer uma nova lógica de base empírica.

Posteriormente Isaac Newton, no prefácio de sua magistral obra “Principia”, vai referir-se também aos artifícios e à mecânica prática. O segundo livro dos “Principia” se ocupou de problemas práticos, embora sua maior contribuição geral não seja esta, mas a nova concepção do mundo físico apresentada pelo autor nos primeiro e terceiro livros. O precursor de Newton, Galileu Galilei, deixou claro nas suas obras que agradecia aos artesãos do Arsenal de Veneza pelos ensinamentos práticos que recebeu, possibilitando o desenvolvimento de suas teorias.

Descartes propôs uma concepção de natureza através de números combinados com figuras, configurando geometricamente os movimento. Com seu sistema de eixos coordenados (chamados de “eixos cartesianos” em sua homenagem) associou a cada ponto do espaço uma tríade de números (normalmente usa-se nas escolas x, y, z). Fundiu a geometria analítica com a álgebra, associando equações às curvas e superfícies. Descartes fez o espaço real de nosso mundo tridimensional identificar-se com o da geometria, uniu realidade e matemática, e nesse espaço o movimento se dava a conhecer por números. Em Descartes temos que “as matemáticas têm invenções muito sutis e que podem servir... para facilitar todas as artes e reduzir o trabalho dos homens” (FUKS, org., p. 87). Mostra-se aqui a ciência e sua relação com a técnica, levando à famosa proposta cartesiana do “Penso, logo existo”, frase na qual fica evidenciada que a razão deveria se encontrar livre no pensamento humano, sem quaisquer condicionantes.


INFLUÊNCIA MATEMÁTICA E SOCIAL FRANCESA DO SÉCULO XVIII

A oposição ao newtonismo inglês – representativo da Física na época – começou a arrefecer na França na primeira metade do século XVIII. Uma situação emblemática da presença do newtonismo na França, e que iria culminar com a matematização francesa, é dada por Voltaire. Em 1738 escreve os “Élements de la philosophie de Newton”. Voltaire também teve ligação com certa Madame du Chatelet, tendo com esta uma longa relação por ao menos 15 anos. A Sra. du Chatelet aprendeu inglês para traduzir Isaac Newton para o francês, pois este tornou-se tão popular que chegou a surgir em Paris uma obra intitulada “Newtonismo para Damas”.

A incorporação da ciência nos domínios da cultura e, especialmente, da política tornou-se cada vez mais comum na Europa. As leis de Newton, além de organizar a matéria inanimada, deveriam segundo muitos refletir sua ordem aplicando-se também à vida e à organização social humana. A adequação da teoria de Newton a toda a natureza observada não impressionou somente os matemáticos da época. Atingiu profundo interesse em filósofos como Kant, compelindo-os a justificar a possibilidade do conhecimento racional da natureza que nos cerca.

Para que s leis físicas se tornassem totalmente operativas e pudessem ser aplicadas era, contudo, necessário desenvolver a Geometria Analítica e a Análise Infinitesimal como instrumentos de análise dos fenômenos naturais. Embora a Matemática estivesse sendo cada vez melhor sucedida na explicação dos fenômenos físicos e celestes, ainda fracassava quando usada para resolver problemas técnicos nas artes práticas – a engenharia, que alavancou o desenvolvimento das técnicas. O desenvolvimento do cálculo matemático pós-Newton deu-se com a publicação, em 1748, da “Introductio in analysis infinitorum” de Leonard Euler. Foi a matemática desenvolvida no século XVIII que serviu de base às aplicações nos ensinamentos de engenharia, principalmente militar, primeiro na École Polytechnique francesa e depois nas Techniches Hochschule alemãs.

Denis Diderot e Jean D`Alembert produziram a “Enciclopédia”, uma das mais impressionantes obras livrescas que o homem já produziu. Seu objetivo era nada menos do que contemplar todo o conhecimento científico, artístico e técnico produzido pela engenhosidade humana até o final do século XVIII. Este é o momento conhecido na história como “Ilustração”. Se desde Bacon evidencia-se que o conhecimento científico se operava pelas sensações, é o manuseio dos objetos que levará a conhecê-los tecnicamente. Daí a ideia dominante dos enciclopedistas (adotada também durante a Revolução Francesa) de que toda ciência particular nasce de uma técnica correspondente. A tarefa da ciência seria a comunicação das classificações de fatos por meio de símbolos. E a simbologia mais apropriada seria a Matemática, capaz de descrever adequadamente os fatos da natureza.

A Geometria usada no final do século XVIII oferecia vantagens práticas visíveis a todos, em especial para a engenharia e arquitetura. Por isso alguns pesquisadores modernos, como o físico Mario Schenberg, afirmam que o governo da Revolução foi o primeiro que instituiu a tecnologia como utilização de teorias, métodos e processos científicos na solução de problemas governamentais. Foi a época dos matemáticos Lagrange, Condorcet, Monge, Laplace, Legendre, que não apenas ajudaram grandemente a estabelecer a matemática em sua forma como a conhecemos, como também tomaram parte ativa na própria Revolução social e política que ocorria. Lagrange, por exemplo, foi um dos propositores da reforma dos pesos e medidas de 1790, da qual surgiu o sistema métrico decimal usado até hoje inclusive no Brasil. Condorcet e Monge pertenceram tanto ao Comitê de Instrução como ao Comitê de Obras Públicas durante o período revolucionário. Monge foi encarregado de estabelecer instituições de ensino superior na França, entre as quais a famosa Escola Politécnica. Esta foi uma escola onde a Matemática teve fundamental importância na divulgação e desenvolvimento de novas técnicas estruturais.

Monge, Lagrange e Laplace fundaram também, em 1790, a Escola Normal, que durou pouco tempo, mas na qual um curso de Monge inaugurou uma das disciplinas básicas da engenharia da época: a Geometria Descritiva.


CONCLUSÃO

As propostas introdutórias deste trabalho ficam dimensionadas através do texto quando verificamos a evidente transformação da ciência utilizando a matemática como instrumento quase total para a análise da natureza. A história viu o surgimento do método científico moderno com a abertura de pensamento que culminou no termo “matematização da natureza”. Em menos de um século o semblante da ciência modificou-se tão profundamente que se tornou quase irreconhecível. A técnica desenvolveu-se, servindo ao povo, à política e à ciência, mostrando o quanto o homem é capaz de viver e conhecer o seu meio, explicando-o e possibilitando os grandes debates públicos e laicos.


REFERÊNCIAS


BOYER, Carl. História da matemática. 2ª ed. São Paulo: Edgard Blücher, 1999.

CHALMERS, Alan. A fabricação da ciência. 1ª ed. São Paulo: Unesp, 1994.

CHEN, Bernard, WESTFALL, Richard S. (orgs.). Newton: Textos – Antecedentes – Comentários, 1ª ed. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto; 2002;

FUKS, Saul (org.). Descartes, 400 Anos – Um legado científico e filosófico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. 1ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 9ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

SCHENBERG, Mário. Pensando a Física. 4ª ed. São Paulo: Nova Stella, 1990.

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