Por: Adílio Jorge Marques
Introdução
Quando buscamos falar de Teologia podemos remeter-nos a várias referências que algumas das vezes proporcionam definições bem determinadas, e em outros casos, especificações bem vagas. É possível dizer que Teologia é composta de duas palavras gregas: Theos e Logos, remetendo etimologicamente a “um tratado sobre Deus”. Assim, antes de ter sido usada pelos autores cristãos, tal palavra foi também usada pelos antigos gregos, segundo Frosini.
Tratar da “Teologia Fontal” deve levar a uma reflexão histórica da tradição cristã dos autores envolvidos, no intuito de que haja uma contextualização entre o momento presente de análise e a época na qual o Novo Testamento estabeleceu-se. Libanio nos diz que a análise das propostas Teológicas perpassa pelo sentido de que as mesmas sofreram a verificação de grandes matrizes ou paradigmas, no sentido de melhor se organizar. Por exemplo:
- A força do sagrado nas palavras dos homens que a redigiram, mostrando como realidades terrestres possa ser manifestação de forças divinas. O sagrado que une os homens, a palavra deixada para a posteridade.
- A gnose sapiencial, onde se pode dizer que ocorre a busca do conhecimento harmonioso em que se inter-relacionam as dimensões religiosa, ética, histórica, ontológica, antropológica, cósmica, em processo gradativo, até a plenitude da sabedoria que se quer atingir.
- A matriz da linguagem, onde vemos uma forma narrativa que é acrescida por outra argumentativa e analítica (Bruno Forte).
- A matriz histórica que é utilizada para entendermos o passado em busca de melhor compreensão do presente, visando também o futuro. A Escritura é o lugar do advento, onde a Palavra de Deus habita com as palavras dos homens, segundo B. Forte. Os Apóstolos tiveram que levar ao mundo a missão que aceitaram de coração: a Boa Nova universal.
A Teologia originante das primeiras comunidades cristãs
A primeira geração cristã (séc. I D.E.C.) realizou verdadeira Teologia. Tratou de refletir a sua fé, interpretando o sentido e evento fundante da vida-morte-ressurreição de Jesus, bem como a constituição e implementação da Igreja. Surgiu a importância da Igreja particular, como vemos nos Atos o termo ekklesía, que parece ser usado no sentido particular ou local. Convém também recordar que a maioria dos livros do Novo Testamento são dirigidos às igrejas locais (como nas cartas de S. Paulo). Mas a igreja particular realiza toda a riqueza da igreja universal. Abre-se em comunhão com as outras igrejas que surgiram, buscando a unidade. Essa abertura é para Frosini um dos elementos constitutivos da Igreja particular, mas que também abrangem o anúncio da Palavra, a aceitação da mesma por meio da fé e do Batismo, a fração do pão, a presença de Cristo através dos Apóstolos, o amor fraterno e verdadeiro (Agapé) e os carismas.
Vemos nos Atos que a localização das igrejas torna-se particular, ou seja, devem-se levar em conta seus traços culturais, ambientais, históricos, e por isso essas primeiras comunidades não são iguais. Apresentam caráter urbano na época apostólica e com ampla autonomia.
Os escritos do Novo Testamento testemunham o esforço intelectivo para responder às principais perguntas que as comunidades faziam (Libanio): “Quem é Jesus para nós?” e “Quem somos nós a partir de Jesus?”.
Bruno Forte acrescenta:
“Existe na Escritura, com a ação e a palavra de Deus, também um componente humano, nutrido de pensamento e palavra, que a assinale e lhe determine as formas sob o peso da história? E, se existe, qual é o seu desenvolvimento sob o impacto da revelação de Deus? Quais os caracteres que especificam o pensamento fontal do encontro entre o êxodo e o advento?”
Tais questões ainda atuais norteiam a questão de que houve uma Teologia Fontal, própria do Novo Testamento; fontal da história da fé e da reflexão cristã.
A fonte de toda Teologia
Existe o questionamento de como é possível a Sagrada Escritura ser a fonte, manancial teológica dela mesma? Segundo Libanio, o erro consiste em analisar a fonte com os olhos de hoje, o que, aliás, é um erro comum em análises históricas, no caso aqui na interrogação da fé primitiva. Se para Libanio o Novo Testamento é Teologia Fontal, paradigmática e estimuladora de tudo mais que se seguiu teologicamente, para B. Forte, citando K. Rahner, a “Teologia do princípio e o princípio da Teologia” se encontram para o entendimento do que hoje se estuda em termos cristãos.
O processo formativo resume um esforço de passar da Teologia da Palavra às palavras que fielmente a veiculem, “para que destas palavras se possa passar sempre de novo, sob a ação do Espírito, à experiência vivificante do encontro com a Palavra do advento Divino” (B. Forte).
Em 1 Jo 1, 1-4 temos uma forte caracterização do exposto acima:
“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e nossas mãos apalparam da Palavra da vida, porque a Vida manifestou-se: nós a vimos e lhe damos testemunho e vos anunciamos esta Vida eterna, que estava voltada para o Pai e que nos apareceu, o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. E isto vos escrevemos para que nossa alegria seja completa.”
O autor e protagonista da reflexão da fé acima se dirige a uma comunidade ou grupo de comunidades. Fica claro que os Escritos são também para quem está fora de uma comunidade. O testemunho sugere que basta o querer, a disposição de fé, para que cada um seja participante daquele magno evento da odisséia humana. Logo, são palavras que fundamentam a fé universal, que a alimentam, a mantém viva na dualidade corpo-essência de todos os ouvintes e/ou leitores.
Ainda segundo Libanio, diferentes estilos surgem com essa reflexão, para que lentamente a comunidade de fé liberte-se de qualquer tipo de “amarra” intelectiva, porém mantendo e respeitando as origens particulares de cada indivíduo. Nota-se uma Teologia narrativa dos Evangelhos e Atos, uma literatura epistolar e também apocalíptica. Como em Rm 10,14, é uma Teologia consciente e reflexiva da fé que nasce da escuta, pois é serva da palavra, depende dela. O Deus de todas as nações suscita que se abram pela fé ao Seu advento, em resposta às suas necessidades.
O Evangelho deixa de ser pensado apenas como letra, mas como espírito. A inspiração requer que seja compreendida de modo respeitoso, seja do vir de Deus ao homem, seja do abrir-se da história humana à ação divina.
Também baseado
1 – A experiência: os primeiros foram testemunhas vivas, viveram a experiência da Palavra. É um caráter transformante. O Advento marcou-os para sempre. A Palavra surge de fora, característica do Advento. Caso contrário, seriam palavras humanas, um êxodo. “Então seus olhos se abriram e o reconheceram” (Lc 24,31).
2 – Ocorre uma necessidade de ANUNCIAR a experiência, para que outros também a conheçam. Essa é a Missão. Ela não é individualista, mas é urgente de amor. Em 1 Cor 9, 16 surge: “Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho!”. Nessa formulação da experiência fontal acaba por ocorrer o processo de formação dos textos do Novo Testamento. A narração predomina na exigência do primeiro anúncio como formas querigmáticas e de catequese de estilo antigo, porém compreensível analisando-se à luz do contexto histórico e cultural da época. Por isso a palavra grega kérygma ou querigma, que significa “proclamação”. O kerix grego é o mensageiro, o que traz a boa notícia. Por isso se dá o nome de kerigma ao anúncio do evangelho (cf. Mt 12,41; Lc 11,32 ; Rm 16,25; 1Cor 1,21; 2,4; 15,14; 2Tm 4). É a mensagem, a pregação, a proclamação. Depois passou a designar a pregação da Cristandade primitiva a respeito de Jesus. Por exemplo, na expressão “Jesus é o Senhor”, ou em “Jesus é o Cristo”, não estão apenas associando um título a Jesus, mas querem associar a história do humilde que foi exaltado por Deus e aí sim feito Senhor, o Cristo. Aqui, história e anúncio se misturam. Uma memória se desenvolve, consciente do evento pascal, de suma importância humana, porém também universal. A Teologia dos diversos autores inspirados são todas alimentadas pela única revelação Divina.
Resume-se assim todo o esforço de se passar da experiência da Palavra às palavras que mais fielmente a veiculem, levando a tradição ao mundo.
Características da Teologia Fontal
Uma forma sintética de colocar o que foi acima exposto nos é dada por Libanio em seis tópicos principais (em * citação semelhante de B. Forte):
- Pneumática: embebida pelo Espírito Santo que suscita a continuidade dos seguidores de Jesus. O Pentecostes seria o princípio, onde o mistério escondido desde séculos é o objeto.*
- Eclesial: nascida no seio vivo de uma comunidade a caminho e referida a ela.*
- Missionária: destinada a transmitir e recriar a fé cristã.
- Vivencial: repleta de sentimentos, conotações afetivas e força convocatória, proveniente da experiência de seguimento do Ressuscitado.
- Contextualizada: na história da comunidade em que foi elaborada. Não retrata desejo explícito e fazer reflexão única e universal, válida igualmente para todos. Como “reflexão da Palavra”, torna presente o dado revelado em diversas situações. Respeita-se as diferentes comunidades. Cria unidade como solidariedade entre os diferentes. O evento do encontro fontal fecunda lugares, tempos e pessoas, mostrando o Ressuscitado que subverte o antigo.*
- Aberta ao futuro: estimula interpretações enriquecedoras, novas releituras da Palavra. O quadro de referência do cristão, ao fazer a leitura do Antigo Testamento, já não é só o livro antigo em si, mas a vida nova em Cristo, iluminando o antigo livro. Como dito acima, a comunidade de FÉ oferece a garantia de exatidão da interpretação. O novo e o antigo convivendo na memória do povo para a garantia da presença de Deus entre os homens. A Teologia do Novo Testamento pode ser então profecia, que abre novos caminhos.*
Conclusão
A Teologia Fontal, das origens, nos legou a base de todas as Teologias que reinaram e ainda nos chegam, após o Concílio Vaticano II. O evento da salvação, a mostra de que Deus desceu até nós, mas que podemos retornar a Ele por Aquele que é Luz, Vida e Amor, estão sempre presentes. A Palavra se fez eterna
Se, como diz B. Forte, existe uma suposta “pobreza” da forma teológica do Novo Testamento, ela se torna a sua maior riqueza. A Boa Nova nos remete para além de si, de nós mesmos, para Deus através de um grande sinal, como resposta a uma necessidade intrínseca humana: voltar ao seio do Pai, recuperar a Criação.
Referências
1 – Frosini, G. A Teologia Hoje – Uma síntese completa e actualizada; EPS; Porto; 2001.
2 – Libanio, J. B. Murad, A.; Introdução à Teologia; Edições Loyola; São Pulo; 1996.
3 – Forte, B. A teologia como companhia, memória e profecia; São Paulo; Paulinas; 1991.
4 – Wicks, J. Introdução ao Método Teológico; Edições Loyola; São Paulo; 1999.
Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência luso-brasileira e história das Tradições.
Caro Adílio,
ResponderExcluirParabéns por esse denso artigo, muito bom, aproveito para acrescentar que Hegel e a escola de Tubingen foram os precurssores dessa teologia da história, passando por Von Urs Balthasar e Von Rad. Vc falou bem sobre a harmonia entre kerigma (proclamação do evangelho) e gnosis (conhecimento),não só das influências sincréticas das religiosidades da época, quanto das matizes filosóficas, como por exemplo, o neoplatonismo.
Parabéns!!!admiro muito seus artigos!!!
Abração!!!
Kadu Santoro
www.jornaldespertar.blogspot.com
Prezado amigo Kadu,
ResponderExcluirAgradeço as suas palavras! Espero que continue visitando os meus textos, e também sou fã (você sabe!) do seu "Jornal Despertar".
Forte abraço.
Adílio.
gostei 10 tenho 10 anos e não gosto de historia
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