Cavaleiro

Cavaleiro
Os créditos da ilustração são de André Marques - www.andre.art.br

Do Elogio à Nova Milícia - São Bernardo

PRÓLOGO

A Hugo, Soldado de Cristo e Mestre de sua Milícia,
Bernardo Abade, só no nome, de Claraval,
Saudações e que lutes o bom combate.



Cruz da Ordem Templária esculpida em pedra encontrada em Tomar, Portugal.


 
 Uma, e depois outra, e até três vezes, se não me engano, havias me pedido, caríssimo Hugo, que dirigisse a ti e a teus companheiros algumas palavras de alento que, se não prejudicassem a lança, vibrassem pelo menos a pena contra o inimigo tirano. E que sempre me afirmavas que tinham de ser um grande estímulo, para que, por não ser possível ajudarmos com as armas, os exortasse e animasse com meus escritos.

Demorei algum tempo em satisfazer teus desejos, não porque desdenhasse teu pedido, antes temendo que, se o aceitasse, me culpassem de precipitado e rápido, posto que, podendo fazê-lo qualquer outro melhor, presumia eu de poder sair airoso de tal empresa, e assim, prejudicava o fruto que podia se obter de coisa tão necessária. Mas ao ver que ,minha grande demora de nada me servia, pois insistias uma e outra vez, ainda que incompetente, decidi-me a fazer o que estava em mim. O leitor julgará se satisfiz seus desejos. Embora certamente, como escrevi este opúsculo senão para contentar-te e aceder ao que me pedias, não me preocupa muito que agrade àqueles que o lerem.


CAPÍTULO I


Elogio à Nova Milícia

Ouve-se dizer que um novo gênero de milícia acaba de nascer na terra, e precisamente naquela região onde antigamente viera nos visitar em carne o Sol Oriente, para que alí mesmo onde expulsou com o poder de seu robusto braço os príncipes das trevas, expulse agora os satélites daqueles, filhos da infidelidade e da confusão, por meio desses seus fortes, resgatando também o povo de Deus e suscitando um poderoso Salvador na casa de David seu servo.

Sim, um novo gênero de milícia nasceu, desconhecido em séculos passados, destinado a lutar sem trégua um duplo combate contra a carne e sangue e contra os espíritos malignos que povoam os ares. Sem dúvida, quando vejo combater só com as forças corporais um inimigo também corporal, não só o tenho por caso maravilhoso, porém sequer o julgo raro. Quando igualmente observo como as forças da alma guerream contra os demônios, tampouco me parece isso assombroso, embora seja muito digno de elogio, pois cheio está o mundo de monges, e todos costumam manter essas lutas. Mas quando se vê que um só homem carrega em seu flanco com ardor e coragem sua dupla espada e cinge os quadrís com um duplo cíngulo, quem não julgará caso insólito e digno de grandíssima admiração? Intrépido e bravo soldado aquele que, enquanto reveste seu corpo com a couraça de aço, guarnece sua alma sob a loriga da fé; pode gozar de completa segurança, porque equipado com essas duplas armas defensivas, não tem que temer aos homens nem aos demônios. E mais, nem sequer teme a morte, antes a deseja. O que poderia assustá-lo vivo ou morto, quando seu viver é Cristo? Ao contrário, desejaria melhor acabar de se soltar do corpo para estar com Cristo, sendo isso o melhor.

Marchai, pois, soldados, ao combate com passo firme e marcial e carregado de valoroso ânimo contra os inimigos de Cristo, bem seguros de que nem a morte nem a vida poderão separá-los da caridade de Deus, que está em Cristo Jesus. No fragor do combate proclamai: Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor. Quão gloriosos se tornam ao regresso triunfal da batalha! Por quão ditosos se teem quando morrem como mártires no campo de combate! Alegra-te, fortíssimo atleta, se vives e vences no Senhor; porém, regozija-te mais e dê saltos de alegria se morres e te unes ao Senhor. A vida te é certamente proveitosa e de grande utilidade, e o triunfo te acarreta a verdadeira glória; mas não sem grande razão se antepóe a tudo isso uma santa morte. Porque se são bem-aventurados os que morrem no Senhor, quanto mais o serão os que sucumbem por Ele!

É verdade certa é que, quer os visite no leito, que os surpreenda no fragor do combate, sempre será preciosa no acatamento do Senhor a morte de seus santos. Mas no ardor da refrega será tanto mais preciosa quanto mais gloriosa Oh, vida segura, quando vai acompanhada de boa consciência! Oh vida seguríssima, repito, quando nem sequer a morte se espera com receio, antes, se a deseja com amorosas ansias e se a recebe com doce devoção. Oh verdadeiramente santa e segura milícia, livre daquele duplo perigo que com frequencia costuma assustar aos homens quando não é Cristo quem os põem na luta!

Quantas vezes, ao travar combate com teu inimigo, tu, que militas nos exércitos do século, temes que, matando-lhe no corpo, matas também sua alma. Ou que, sendo tu morto pelo aço de teu rival, percas juntamente a vida da alma e a vida do corpo!

Porque não é pelo resultado material da luta, antes pelos sentimentos do coração pelo que julgamos os Cristãos acerca do risco corrido em uma guerra ou da vitória ganha; porque se a causa é boa, não poderá ser nunca mau o resultado, seja qual for o êxito , assim como não poderá se ter por boa a vitória ao final da campanha, quando a causa pela qual se iniciou não o foi e os que a provocaram não tiveram reta intenção. Se querendo matar a outro, és tu o morto, morres já homicida. E se prevaleces sobre teu contrário e, levado pelo desejo de vencer-lhe, mata-o, embora vivas, és também homicida. Infausta vitória na que, triunfando do homem, sucumbes ao pecado! E se a ira ou a soberba te avassalam, vãmente te jactas por haver dominado a teu oponente.

Dá-se outro caso, à exceção dos ditos, e é o de quem mata, não por zêlo de vingança, nem pela perversidade de gozar do triunfo, senão para evitar o mesmo a morte. Porém tampouco direi seja boa tal vitória; porque dentre dois males, como são a morte da alma ou a morte do corpo, preferível é a segunda; não porque morra o corpo morre também na alma, antes a alma que pecar, ela morrerá.


CAPÍTULO II

Da Milícia Secular

Qual será, pois, o fino fruto do que não chamo de milícia, senão de milícia secular, se o que mata peca mortalmente e o que cai morto perece para sempre? Porque se a esperança faz arar ao que ara, para usar as palavras do Apóstolo, e o que separa o faz esperando receber o fruto, que estranho erro é esse em que viveis, soldados do século? Que fúria frenética e intolerável os arrebata para que de tal modo guerreais passando grandes sofrimentos e gastando toda vossa economia, sem mais resultado que vir a parar no pecado ou na morte? Vestis vossos cavalos com sedas; aplicam em vossas couraças e lorigas não sei que plumas de diversos tecidos; pintais as ponteiras dos escudos, as capas dos escudos, as selas de montar, mandais fazer de ouro e prata os freio e as esporas, adornando-os de pedrarias, e assim, com toda a pompa, cheios de vergonhoso furor e imprudente estupor, cavalgais a passo ligeiro para a morte. São essas insígnias militares ou melhor enfeites de mulheres? Acaso a adaga inimiga retrocederá ante o brilho do ouro? Respeitará as ricas pedras? Não se atreverá a cortar e rasgar as sedas? Enfim, não vos foi ensinado a vós mesmos a experiência diária que para um soldado em campanha o mais necessário são três coisas, convém saber: valor, Sagacidade e cautela para parar os golpes do inimigo, soltura e agilidade de movimentos que vos permita ir ligeiro em vosso avanço e perseguição, e, por último, que estejais sempre pronto e rápido para feri-lo e derrubá-lo.

A vós vemos, pelo contrário, cuidar com esmero vossa cabeleira ao jeito feminino, o qual redunda em prejuízo de vossa visão no estrondo da guerra; vos envolveis com longos camisões que chegam até os pés e os travam; e, enfim, sepultais em amplas e complicadas mangas vossas mãos delicadas e ternas. Sobre tudo isso adicionais o que mais pode amedrontar a consciência de um soldado que sai em campanha, quero dizer, o motivo leviano e frívolo pelo qual teve a imprudência de se meter em milícia tão perigosa.

Por certo é que todas vossas diferenças e guerras nascem só de certos arrebatamentos de ira, ou de vãos desejos de glória, ou de ambição para conquistar alguma vantagem terrena. E, por tais motivos, certo que não se pode com segura consciência nem matar nem ceder.
CAPÍTULO III

Dos Soldados de Cristo

E mais, os soldados de Cristo lutam com segurança as batalhas do Senhor, sem temor de cometer pecado por morte do inimigo, nem por desconfiança de sua salvação em caso de sucumbir. Porque dar ou receber a morte por Cristo não só não implica uma ofensa a Deus nem culpa alguma, senão que merece muita glória; pois no primeiro caso, o homem luta por seu Senhor, e no segundo, o Senhor se dá ao homem por prêmio, olhando Cristo com agrado a vingança que se lhe faz de seu inimigo, e ainda com agrado maior se oferece o próprio por consolo ao que cai na lida. Assim, pois, digamos uma e mais vezes que o Cavaleiro de Cristo mata com segurança de consciência e morre com maior confiança e segurança ainda.

Utilidade tira para si, se sucumbe, e triunfo para Cristo, se vence. Não sem motivo leva a espada à cinta. Ministro de Deus é para castigar severamente os que se dizem seus inimigos; de Sua Divina Majestade recebeu o zero, para castigo dos que agem mal e exaltação dos que praticam o bem. Quando tira vida de um malfeitor não se lhe há de chamar homicida, senão "malicida", se vale a palavra, executa pontualmente as vinganças de Cristo sobre os que praticam a iniquidade, e com razão adquire o título de defensor dos cristãos. Se o matam, não dizemos que se perdeu, senão que se salvou. A morte que dá é para a glória de Cristo, e a que recebe, para sua própria. Na morte de um pagão pode se gloriar um cristão porque sai glorificado Cristo; morrendo valorosamente por Cristo mostra-se a liberalidade do Grande Rei, posto que tira seu Cavaleiro da terra para dar-lhe o galardão. Assim, pois, o justo se alegrará quando o primeiro deles sucumba, vendo aparecer a divina vingança. Mas se cai o guerreiro do Senhor, dirá: acaso não haverá recompensa para o justo? Certo que sim, pois há um Deus que julga os homens sobre a terra.

Claro está que não se haveria de dar morte aos pagãos se se pudesse refreá-los por outro qualquer meio, de modo que não acometessem nem perseguissem os fiéis e os oprimissem.

Mas por enquanto vale mais acabar com eles que tirar de suas mãos a vara com que haviam de escravizar os justos, e que não sejam os justos que afrouxem suas mãos à iniquidade.

Pois, porque, se não é lícito em absoluto ao Cristão ferir com a espada, como o Pregoeiro de Cristo exortava os soldados a se contentar com o soldo, sem proibir-lhes continuar em sua profissão? Isto suposto, se por particular providência de Deus se permite ferir com a espada os que abraçam a carreira militar, sem aspirar outro gênero de vida mais perfeito, a quem, pergunto eu, será mais permitido que os valentes, por cujo braço esforçado retemos ainda a fortaleza da cidade de Sión, como baluarte protetor aonde possa se acolher o povo santo, guardião da verdade, depois de expulsos os violadores da Lei Divina? Dissipai, pois, e desfazei sem temor a essas pessoas que só respiram guerra; passai à espada aos que semeiam o medo e a dúvida entre vossas filas; expulsai da cidade do Senhor todos os que praticam a iniquidade e ardem em desejos de saquear todos os tesouros do povo cristão guardados dentro dos muros de Jerusalém, que só cobiçam se apoderar do santuário de Deus e profanar todos nossos santos mistérios. Desembainhe-se a dupla espada, espiritual e material, dos cristãos, e descarregue com força sobre a testa dos inimigos, para destruir tudo o que se ergue contra a ciência de Deus, ou seja, contra a fé dos seguidores de Cristo; não digam nunca os fiéis 'Onde está seu Deus'?

Quando eles partirem em fuga e derrotados, voltará então à sua propriedade e à sua casa, da que diz de forma irada o Evangelho: Eis que vossa casa ficará deserta e um profeta queixa-se desse modo: Tive que me ausentar de minha casa e templo e deixar abandonada minha propriedade. Se, então se cumprirá aquele vaticínio profético que diz: O Senhor redimiu seu povo e o livrou das mãos do poderoso; e virão e cantarão hinos a Deus no monte Sión, e se juntarão aos bens do Senhor.

Regozija-te, Jerusalém, porque chegou o tempo da visita de teu Deus. Enche também de júbilo, desertos de Jerusalém, e prorrompei em celebrações, porque o Senhor aliviou a aflição de seu povo, redimiu sua cidade santa e levantou poderosamente seu braço frente aos olhos de todas as nações. Virgem de Israel, havias caído sem que houvesse quem te desse a mão para te levantar. Ergue-te agora, sacode o pó, Virgem cativa filha de Sion.

Levanta-te, repito, suba ao topo de tuas torres e vislumbra dalí os rios caudalosos de gozo e alegria que o Senhor faz correr para ti. De agora em diante não te chamarão "a abandonada", nem tua terra se verá por mais tempo desolada, porque o Senhor se comprouve em ti e voltarás a ter teus campos repovoado. Olhe ao redor e veja: todos se juntaram para vir a ti. Eis aí o socorro que te foi enviado do alto. Por eles a ti será cumprida a antiga promessa: te colocarei para a glória dos séculos e gozo de geração em geração; mamarás o leite das nações e te criarão o valor dos reis. E também, como a mãe acaricia seus filhinhos, assim também eu os aliviarei e em Jerusalém serás aliviado. Não ves com quantos testemunhos antigos fica aprovada vossa milícia e como se cumprem ante vossos olhos os oráculos alusivos à cidade das virtudes do Senhor? Mas de forma que o sentido literal não impeça que entendamos e creiamos no espiritual, e que a interpretação que agora damos na terra às palavras dos profetas não obste para que esperemos vê-las cumpridas na eternidade gloriosa; não seja pelo que vemos que se nos desvaneça o que diz a fé, e pelo pouco que temos percamos a esperança nas copiosas riquezas, e, por fim, pela certeza do presente esqueçamos o futuro. Quanto ao mais, a glória temporal da Jerusalém terrena não só se destrói ou diminui os gozos que teremos na celestial, senão que os aumenta, se temos bastante fé e não duvidemos que esta daquí embaixo só é uma imagem da dos céus, que é nossa mãe.


CAPÍTULO IV

Do modo de viver dos Soldados de Cristo

Mais para imitação ou confusão de nossos soldados que não militam com certeza para Deus, senão para o diabo, digamos brevemente qual há de ser a vida e os feitos dos Cavaleiros de Cristo e como hão de se haver em tempo de paz e em dias de guerra, para que se veja claramente quanta é a diferença entre a milícia do século e a de Deus. E antes de tudo, tanto em uma como na outra dá-se grandíssima importância à obediência e tem-se em muito alto conceito a disciplina, sabendo todos quanta verdade se encerra naqueles [ditos] da Escritura: o filho indisciplinado perecerá. E naquele outro: O desobedecer ao Senhor é como o pecado de magia, e como crime de idolatria o não querer se submeter. Vão e vem estes estes bons soldados a um sinal de mando, põem as roupas que ordena o Capitão, não tomam alimento nem vestem uniforme fora dos estipulados por ele. E o mesmo quanto ao comer e no que vestir evitam todo o superfluo, satisfeitos com o necessário. Levam a vida comum dentro de alegre, mas modesta e sóbria camaradagem, sem esposas e sem filhos. Para que nada falte à perfeição evangélica, não possuem nada de próprio, pensando só em conservar entre si a união e a paz. Direis que toda aquela multidão de homens tem um só coração e uma só alma; até tal ponto que nenhum deles quer se orientar por sua própria vontade, senão seguir em tudo a daquele que manda. Jamais estão ociosos nem vagam daqui para lá em busca de curiosidades, senão que durante todo o tempo, em que não estão em campanha, o que raras vezes ocorre, a fim de comer o pão gratuito, ocupam-se em limpar, remendar, tirar o môfo, compor e reparar tanto as armas como as vestimentas, para preservá-los e conservá-los contra os desgastes do tempo e do uso; e quando não isso, obedecem o que lhes ordena o capitão e trabalham no que é necessário para todos.

Não os vereis favorecer pessoas; respeitam e obedecem sempre ao representante de Deus, sem se preocupar em se é ou não é o mais nobre. Recatam-se mutuamente de mostras de honra e deferencias, suportam as obrigações uns dos outros, cumprindo com isso a Lei de Cristo. Não se estilam entre eles palavras arrogantes, nem ocupações inúteis, nem risos sem compostura, nem o mais leve murmúrio; e se algum incorresse nisso, não ficaria sem corretivo.

Tem aversão à prestidigitação e jogos de azar; tampouco se dedicam à caça e não se permitem à falconagem, embora tão generalizada. Abominam cômicos, magos e bufões, cujo trato evitam com cuidado; detestam as toadas engraçadas, as comédias e toda a linha de espetáculos, como puras vaidades e necessidades enganosas.

Cortam o próprio cabelo, sabendo pelos ensinamentos do apóstolo que é uma vergonha para os homens o pentear cabelos compridos. Nunca enfeitam os cabelos, raras vezes tomam banho, andam com a barba cerrada, geralmente cobertos de poeira e enegrecidos pelas cotas dde malha e queimados pelo sol.

Ao se aproximar o combate, armam-se de fé em sua alma e cobrem-se por fora de ferro, não de ouro, a fim de que assim, bem equipados de armas, não engalanados de jóias, infundam medo a seus inimigos sem provocar sua cobiça. Procuram cavalos fortes e velozes, não formosos e bem arreiados, pensando mais em vencer que em ostentar altivez, e o que desejam não é precisamente causar admiração e pasmo, senão turbação e medo.

E até começar a luta, não se lançam a ela impetuosos e de forma turbulenta, como empurrados pela precipitação, senão com suma prudência e extrema cautela, ordenando-se todos em coluna cerrada para se apresentar à batalha, segundo lemos, que costumava fazer o povo de Israel. Mostrando-se em tudo verdadeiros israelitas, se adiantam ao combate pacífica e sossegadamente. Mas apenas o clarim dá o sinal de ataque, deixando subitamente sua natural benignidade, parecem gritar com o salmista: Não odiei, Senhor, àqueles a que tinhas aversão? Não me recriminastes ante a conduta de teus inimigos? E assim davam carga sobre seus adversários, tal como entrassem em um rebanho de cordeiros, sem que, apesar de seu escasso número, se intimidem ante a crudelíssima barbárie e ingente multidão das hostes contrárias. É que aprenderam a confiar não em suas próprias forças, senão no poder do Senhor Deus dos exércitos, em quem está a vitória, o qual, segundo se diz nos Macabeus, pode facilmente por meio de um punhado de valentes acabar com grandes multidões, e sabe livrar seus soldados com igual arte das mãos de poucos com de muitos; porque o triunfo não está em que um exército seja numeroso, senão que a fortaleza provem do céu.

Experiência frequentíssima tem disto, porque mais de uma vez lhes ocorreu derrotar e afugentar o inimigo, lutando um contra mil e dois contra dez mil.

Enfim, estes Soldados de Cristo, de modo maravilhoso e singular, mostram-se tão mansos como cordeiros e tão ferozes como leões, não se sabendo se lhe hás de chamar monges ou guerreiros ou dar-lhes outro nome mais apropriado que abarque a ambos, pois conseguem irmanar a mansidão de uns com o valor e a fortaleza de outros. Acerca de tudo isso, que dizer, senão que tudo isso é obra de Deus, e obra admirável a nossos olhos? Eis aqui os homens fortes que o Senhor foi elegendo de um confim a outro do mundo, entre os mais bravos de Israel para faze-los soldados de sua escolta, a fim de guardar o leito do verdadeiro Salomão, ou seja o Santo Sepulcro, em cujo redor os pôs para estar alertas como fiéis sentinelas armados de espada e habilíssimos na arte da guerra.



Teologia Fontal: o que é?

Por: Adílio Jorge Marques

Introdução

Quando buscamos falar de Teologia podemos remeter-nos a várias referências que algumas das vezes proporcionam definições bem determinadas, e em outros casos, especificações bem vagas. É possível dizer que Teologia é composta de duas palavras gregas: Theos e Logos, remetendo etimologicamente a “um tratado sobre Deus”. Assim, antes de ter sido usada pelos autores cristãos, tal palavra foi também usada pelos antigos gregos, segundo Frosini.

Tratar da “Teologia Fontal” deve levar a uma reflexão histórica da tradição cristã dos autores envolvidos, no intuito de que haja uma contextualização entre o momento presente de análise e a época na qual o Novo Testamento estabeleceu-se. Libanio nos diz que a análise das propostas Teológicas perpassa pelo sentido de que as mesmas sofreram a verificação de grandes matrizes ou paradigmas, no sentido de melhor se organizar. Por exemplo:

- A força do sagrado nas palavras dos homens que a redigiram, mostrando como realidades terrestres possa ser manifestação de forças divinas. O sagrado que une os homens, a palavra deixada para a posteridade.

- A gnose sapiencial, onde se pode dizer que ocorre a busca do conhecimento harmonioso em que se inter-relacionam as dimensões religiosa, ética, histórica, ontológica, antropológica, cósmica, em processo gradativo, até a plenitude da sabedoria que se quer atingir.

- A matriz da linguagem, onde vemos uma forma narrativa que é acrescida por outra argumentativa e analítica (Bruno Forte).

- A matriz histórica que é utilizada para entendermos o passado em busca de melhor compreensão do presente, visando também o futuro. A Escritura é o lugar do advento, onde a Palavra de Deus habita com as palavras dos homens, segundo B. Forte. Os Apóstolos tiveram que levar ao mundo a missão que aceitaram de coração: a Boa Nova universal.

A Teologia originante das primeiras comunidades cristãs

A primeira geração cristã (séc. I D.E.C.) realizou verdadeira Teologia. Tratou de refletir a sua fé, interpretando o sentido e evento fundante da vida-morte-ressurreição de Jesus, bem como a constituição e implementação da Igreja. Surgiu a importância da Igreja particular, como vemos nos Atos o termo ekklesía, que parece ser usado no sentido particular ou local. Convém também recordar que a maioria dos livros do Novo Testamento são dirigidos às igrejas locais (como nas cartas de S. Paulo). Mas a igreja particular realiza toda a riqueza da igreja universal. Abre-se em comunhão com as outras igrejas que surgiram, buscando a unidade. Essa abertura é para Frosini um dos elementos constitutivos da Igreja particular, mas que também abrangem o anúncio da Palavra, a aceitação da mesma por meio da fé e do Batismo, a fração do pão, a presença de Cristo através dos Apóstolos, o amor fraterno e verdadeiro (Agapé) e os carismas.
Vemos nos Atos que a localização das igrejas torna-se particular, ou seja, devem-se levar em conta seus traços culturais, ambientais, históricos, e por isso essas primeiras comunidades não são iguais. Apresentam caráter urbano na época apostólica e com ampla autonomia.

Os escritos do Novo Testamento testemunham o esforço intelectivo para responder às principais perguntas que as comunidades faziam (Libanio): “Quem é Jesus para nós?” e “Quem somos nós a partir de Jesus?”.

Bruno Forte acrescenta:

“Existe na Escritura, com a ação e a palavra de Deus, também um componente humano, nutrido de pensamento e palavra, que a assinale e lhe determine as formas sob o peso da história? E, se existe, qual é o seu desenvolvimento sob o impacto da revelação de Deus? Quais os caracteres que especificam o pensamento fontal do encontro entre o êxodo e o advento?”

Tais questões ainda atuais norteiam a questão de que houve uma Teologia Fontal, própria do Novo Testamento; fontal da história da fé e da reflexão cristã.


A fonte de toda Teologia

Existe o questionamento de como é possível a Sagrada Escritura ser a fonte, manancial teológica dela mesma? Segundo Libanio, o erro consiste em analisar a fonte com os olhos de hoje, o que, aliás, é um erro comum em análises históricas, no caso aqui na interrogação da fé primitiva. Se para Libanio o Novo Testamento é Teologia Fontal, paradigmática e estimuladora de tudo mais que se seguiu teologicamente, para B. Forte, citando K. Rahner, a “Teologia do princípio e o princípio da Teologia” se encontram para o entendimento do que hoje se estuda em termos cristãos.

O processo formativo resume um esforço de passar da Teologia da Palavra às palavras que fielmente a veiculem, “para que destas palavras se possa passar sempre de novo, sob a ação do Espírito, à experiência vivificante do encontro com a Palavra do advento Divino” (B. Forte).
Em 1 Jo 1, 1-4 temos uma forte caracterização do exposto acima:

“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e nossas mãos apalparam da Palavra da vida, porque a Vida manifestou-se: nós a vimos e lhe damos testemunho e vos anunciamos esta Vida eterna, que estava voltada para o Pai e que nos apareceu, o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. E isto vos escrevemos para que nossa alegria seja completa.”

O autor e protagonista da reflexão da fé acima se dirige a uma comunidade ou grupo de comunidades. Fica claro que os Escritos são também para quem está fora de uma comunidade. O testemunho sugere que basta o querer, a disposição de fé, para que cada um seja participante daquele magno evento da odisséia humana. Logo, são palavras que fundamentam a fé universal, que a alimentam, a mantém viva na dualidade corpo-essência de todos os ouvintes e/ou leitores.

Ainda segundo Libanio, diferentes estilos surgem com essa reflexão, para que lentamente a comunidade de fé liberte-se de qualquer tipo de “amarra” intelectiva, porém mantendo e respeitando as origens particulares de cada indivíduo. Nota-se uma Teologia narrativa dos Evangelhos e Atos, uma literatura epistolar e também apocalíptica. Como em Rm 10,14, é uma Teologia consciente e reflexiva da fé que nasce da escuta, pois é serva da palavra, depende dela. O Deus de todas as nações suscita que se abram pela fé ao Seu advento, em resposta às suas necessidades.

O Evangelho deixa de ser pensado apenas como letra, mas como espírito. A inspiração requer que seja compreendida de modo respeitoso, seja do vir de Deus ao homem, seja do abrir-se da história humana à ação divina.

Também baseado em Bruno Forte podemos distinguir dois níveis fundamentais da Teologia Fontal:

1 – A experiência: os primeiros foram testemunhas vivas, viveram a experiência da Palavra. É um caráter transformante. O Advento marcou-os para sempre. A Palavra surge de fora, característica do Advento. Caso contrário, seriam palavras humanas, um êxodo. “Então seus olhos se abriram e o reconheceram” (Lc 24,31).

2 – Ocorre uma necessidade de ANUNCIAR a experiência, para que outros também a conheçam. Essa é a Missão. Ela não é individualista, mas é urgente de amor. Em 1 Cor 9, 16 surge: “Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho!”. Nessa formulação da experiência fontal acaba por ocorrer o processo de formação dos textos do Novo Testamento. A narração predomina na exigência do primeiro anúncio como formas querigmáticas e de catequese de estilo antigo, porém compreensível analisando-se à luz do contexto histórico e cultural da época. Por isso a palavra grega kérygma ou querigma, que significa “proclamação”. O kerix grego é o mensageiro, o que traz a boa notícia. Por isso se dá o nome de kerigma ao anúncio do evangelho (cf. Mt 12,41; Lc 11,32 ; Rm 16,25; 1Cor 1,21; 2,4; 15,14; 2Tm 4). É a mensagem, a pregação, a proclamação. Depois passou a designar a pregação da Cristandade primitiva a respeito de Jesus. Por exemplo, na expressão “Jesus é o Senhor”, ou em “Jesus é o Cristo”, não estão apenas associando um título a Jesus, mas querem associar a história do humilde que foi exaltado por Deus e aí sim feito Senhor, o Cristo. Aqui, história e anúncio se misturam. Uma memória se desenvolve, consciente do evento pascal, de suma importância humana, porém também universal. A Teologia dos diversos autores inspirados são todas alimentadas pela única revelação Divina.

Resume-se assim todo o esforço de se passar da experiência da Palavra às palavras que mais fielmente a veiculem, levando a tradição ao mundo.


Características da Teologia Fontal

Uma forma sintética de colocar o que foi acima exposto nos é dada por Libanio em seis tópicos principais (em * citação semelhante de B. Forte):

- Pneumática: embebida pelo Espírito Santo que suscita a continuidade dos seguidores de Jesus. O Pentecostes seria o princípio, onde o mistério escondido desde séculos é o objeto.*

- Eclesial: nascida no seio vivo de uma comunidade a caminho e referida a ela.*

- Missionária: destinada a transmitir e recriar a fé cristã.

- Vivencial: repleta de sentimentos, conotações afetivas e força convocatória, proveniente da experiência de seguimento do Ressuscitado.

- Contextualizada: na história da comunidade em que foi elaborada. Não retrata desejo explícito e fazer reflexão única e universal, válida igualmente para todos. Como “reflexão da Palavra”, torna presente o dado revelado em diversas situações. Respeita-se as diferentes comunidades. Cria unidade como solidariedade entre os diferentes. O evento do encontro fontal fecunda lugares, tempos e pessoas, mostrando o Ressuscitado que subverte o antigo.*

- Aberta ao futuro: estimula interpretações enriquecedoras, novas releituras da Palavra. O quadro de referência do cristão, ao fazer a leitura do Antigo Testamento, já não é só o livro antigo em si, mas a vida nova em Cristo, iluminando o antigo livro. Como dito acima, a comunidade de FÉ oferece a garantia de exatidão da interpretação. O novo e o antigo convivendo na memória do povo para a garantia da presença de Deus entre os homens. A Teologia do Novo Testamento pode ser então profecia, que abre novos caminhos.*


Conclusão

A Teologia Fontal, das origens, nos legou a base de todas as Teologias que reinaram e ainda nos chegam, após o Concílio Vaticano II. O evento da salvação, a mostra de que Deus desceu até nós, mas que podemos retornar a Ele por Aquele que é Luz, Vida e Amor, estão sempre presentes. A Palavra se fez eterna em palavras. Reverberam as antigas tradições dos grandes Mestres.

Se, como diz B. Forte, existe uma suposta “pobreza” da forma teológica do Novo Testamento, ela se torna a sua maior riqueza. A Boa Nova nos remete para além de si, de nós mesmos, para Deus através de um grande sinal, como resposta a uma necessidade intrínseca humana: voltar ao seio do Pai, recuperar a Criação.



Referências

1 – Frosini, G. A Teologia Hoje – Uma síntese completa e actualizada; EPS; Porto; 2001.
2 – Libanio, J. B. Murad, A.; Introdução à Teologia; Edições Loyola; São Pulo; 1996.
3 – Forte, B. A teologia como companhia, memória e profecia; São Paulo; Paulinas; 1991.
4 – Wicks, J. Introdução ao Método Teológico; Edições Loyola; São Paulo; 1999.



Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência luso-brasileira e história das Tradições.

BREVE SÍNTESE DO PERÍODO DOS JUÍZES NO ANTIGO TESTAMENTO.

Por: Kadu Santoro

CONTEXTO HISTÓRICO:

            Logo após a morte de Josué, em torno de 1200 AC.(?) ( Js. 24 ), as tribos ficaram sem uma liderança que pudesse unir as forças para se protejerem da ofensiva dos povos vizinhos como os filisteus, midianitas, amonitas, cananeus entre outros.

Em função da ocupação das terras em Canaã pelos hebreus, eles ainda conviveram muito tempo com esses povos vizinhos e começaram a serem influenciados culturalmente e religiosamente por estes. A partir desta convivência com estes povos vizinhos, os hebreus começaram a se afastar de YHWH, e começaram a entrar num ciclo chamado de ciclo do pecado, onde neste momento, YHWH começou a levantar e a estabelecer juízes. O período dos juízes, corresponde a mais ou menos dois séculos de história.


O CICLO DO PECADO ( O DECLÍNIO MORAL DE ISRAEL ):




O povo passou por mais de três séculos nos quais, “não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” ( Jz. 17.6; 21.25 ). Durante este período, o povo vivia da seguinte forma:

1º) o povo obedecia a YHWH durante um tempo;
2º) em seguida afastavam-se dele;
3º) por causa da desobediência, YHWH permitia a opressão pelos inimigos;
4º) o povo se arrependia e clamava pela libertação;
5º) Deus levantava juízes para livrar o povo das mãos do inimigo;
6º) O povo depois do livramento servia a YHWH;

            Este ciclo do pecado, virá se repetindo ao longo da história desse povo, passando pelo período da monarquia, até culminar no exílio.

OS JUÍZES:
            Os juízes eram homens e mulheres carismáticos, levantados e estabelecidos por YHWH para libertarem o povo da opressão e escravidão dos inimigos. Eram pessoas tementes a YHWH, marcadas por uma forte personalidade, capazes de se imporem moralmente perante as tribos. Eles também tinham a função de julgar. Foram ao total, doze juízes, sendo que eles eram classificados como:


1º) Juízes Maiores – Carismáticos ou salvadores:
 Otoniel ( 3.7-11 ); Eúde ( 3.12-31 ); Débora e Barac ( 4.1-5,32 ); Gideão ( 6.11-8,35 ); Jefté ( 11.1-40 ); e Sansão ( 13.1-16, 31 ).

1º) Juízes Menores – Estatais:
 Abimeleque ( 9 ); Tola ( 10.1-2 ); Jair ( 10.3-5 ); Ibsã ( 12.8-10 ); Elon ( 12.11-12 ); e Abdon ( 12.13-15 ).

OS TEMAS PRINCIPAIS:
O livro de juízes é rico em narrativas, vejamos alguns temas principais desenvolvidos ao longo da história dos juízes:

1º) A continuação da história da vida dos Hebreus na terra prometida;
2º) A apostasia dos Hebreus em relação à aliança com YHWH e a opressão resultante nas mãos dos inimigos;
3º) A idolatria praticada pelos Hebreus junto com os povos canaeus;
4º) YHWH mostra que ele é o único Deus verdadeiro e juiz;
5º) O declínio da condição espiritual dos juízes;
6º) O poder da fé e da oração ( Hb. 11.23,33 );
7º) A difícil relação entre as tribos, que irão resultar posteriormente na divisão em dois reinos no período da monarquia;

VALOR HISTÓRICO DO LIVRO DE JUÍZES:
            O livro de juízes, é considerado como um “livro histórico” da bíblia, segundo o modo de se relatar a história naquele tempo. O livro nos fornece um precioso quadro geral do modo de vida das tribos de Israel após a sua instalação em Canaã, relatando sobre a vida política, social e religiosa daquele povo. O livro também nos revela o declínio espiritual e moral daquelas tribos, após se estabelecerem na terra prometida. Este registro deixa claro os infortúnios que sempre ocorriam ao povo Hebreu quando eles se esqueciam do seu concerto com YHWH e buscavam a outros deuses, praticando a idolatria e a devassidão.

VISÃO TEOLÓGICA:
            O livro de juízes nos apresenta um olhar teológico de como Deus acompanha o seu povo ao longo da história concreta, mesmo no meio dos mais graves acontecimentos, como as guerras contra os povos inimigos. Em função da desobediência e da idolatria, vem o castigo, que aparece nas derrotas perante os povos estrangeiros; de depois a vitória, mediante os intermediários do Senhor, os juízes “salvadores”.

            Resumindo, a idéia teológica que ressalta deste livro é, pois, a imagem que um povo livre tem de Deus, que o acompanha para o libertar após o seu arrependimento.

BIBLIOGRAFIA:

            SCHULTZ, Samuel J. , A história de Israel no Antigo Testamento, Vida Nova, SP, 1995.
                BRIGHT, John, História de Israel, Ed. Paulinas, SP, 1978.



Kadu Santoro é designer gráfico, teólogo e pesquisador brasileiro, residente na cidade do Rio de Janeiro, responsável pela publicação do Jornal Despertar, um informativo teológico e filosófico e do blog jornaldespertar.blogspot.com

SÃO CRISTOVÃO DA CHAROLA – UMA HISTÓRIA COM PÉS E CABEÇA


Encontra-se numa pintura mural da Charola Templária em Tomar um insólito São Cristóvão representado como cinocéfalo, ou seja, com cabeça de canídeo. Pretende este post revelar e dar a conhecer o motivo dessa misteriosa representação. Serve também de complemento ao post anterior quanto à influência que o médio oriente pode ter exercido sobre esse grande mestre Templário Português que foi Gualdim Pais.

Dos diversos mistérios que Tomar encerra, a imagem de São Cristóvão com cabeça de canídeo, representada numa pintura mural da Charola, tem sido um dos que mais tem intrigado os que estudam os segredos de Tomar.

Não se conhece a data exata da pintura, mas calcula-se ser anterior ao período Manuelino, situando-a alguns autores no século XIV e outros no tempo de Gualdim Pais. A imagem não está em bom estado de conservação pelo que pode ser subjetiva, senão abusada, a interpretação de São Cristóvão com cabeça de cão, porém é certo tratar-se de um São Cristóvão com todos os seus atributos iconográficos.

Apesar de pessoalmente não conseguir reconhecer tal cabeça na dita imagem, irei partir desse pressuposto para concluir por uma ideia que pode concorrer com algumas das explicações dadas.

As referências literárias tomam-na como "um intrigante São Cristóvão pintado numa das paredes interiores da Charola com cabeça de cão à semelhança do deus egípcio Anúbis, divindade psicopompica ou de passagem entre duas dimensões, dois estados de consciência. É equivalente ao deus lusitano Endóvelicos, a Lug e a Hermes", ou então, “e sendo São Cristóvão o gigante que conduz Cristo, fonte de luz, de uma margem a outra margem de um rio, é evidentemente, uma metáfora do percurso de Órion (também gigante) que guia o Sol no atravessamento da Via Láctea (o rio celeste). Outrora tal fenômeno astronômico era associado à festa da Ascensão, conferindo, assim, a São Cristóvão a função de psicopompa, isto é, de condutor das almas para a sua morada celeste”, segundo literatura diversa que aborda essa pintura.

Ainda citando outra literatura quanto aquela imagem, podemos ver que “Cão refere-se à Constelação do hemisfério austral, a Sueste da de Órion. Inicialmente, estava ligada apenas à estrela Sírio, a mais brilhante deste conjunto e até dos Céus. Esta é o Cão Maior; o Cão Menor fica a seu Norte. Ora, aquela fica no fim da Estrada de Santiago, ou seja, o final da Via Láctea. Por isso, temos intimas relações entre os membros da Ordem do Templo e os da Ordem de Santiago, caminho terrestre em sintonia com o do macrocosmo.”
Após esta introdução começaremos aqui a aventura que antecedeu a conclusão que constitui a teoria que nos propomos a defender.

Numa das nossas incursões pela charola, e admirando a imagem em questão numa tentativa de reconhecer os diversos elementos que a compõem, reparo que o menino Jesus transportado nas costas por São Cristóvão parece ter os pés tortos. Tortos? Seria esse detalhe um pé ou uma mão? Estaria mesmo torto ou serão às vicissitudes do tempo, que tanto deteriorou aquela imagem, a levar-me a pensar estar perante um Cristo de pés tortos?
Se assim fosse isso abria-nos uma nova porta para investigar a estranheza da imagem. Era uma pista para tentarmos chegar a outras conclusões quanto aquela imagem.

Obviamente o Cristo de pés tortos gerou comentários em tom jocoso e originou um momento lúdico entre nós, mas na verdade estávamos perante uma possibilidade e nem a percebemos na altura. Teria isso sentido algum?

Para admiração de todos nós, existe entre os Bizantinos a ideia de que Cristo tinha uma perna mais curta que outra, originando representações onde tal se evidencia. Existe também a ideia de que talvez tivesse um pé torto. É, portanto, sobejamente conhecida a teoria do Cristo Coxo no mundo Bizantino. Tudo isto está longe do nosso mundo ocidental e estava mais longe ainda da nossa ideia quando abordamos o tema.

Mas donde provém essa ideia de um Cristo coxo? Pode isso levar-nos a outras pistas para entendermos aquela pintura mural onde São Cristóvão se apresenta com cabeça de cão? Sim, sem dúvida, mas antes vamos abordar a primeira questão.

O Santo Sudário deve ter sido anteriormente conhecido como Mandylion, assim designado desde o século I e em posse do mundo Bizantino e como Sudário a partir do desaparecimento do Mandylion de Constantinopla em 1204 e já na posse da igreja ocidental em meados do séc. XIV. A resposta para o Cristo Coxo parece encontra-se precisamente nesta relíquia.

No Sudário, Nosso Senhor parece ter uma perna mais curta que a outra, à esquerda, que permaneceu encurvada na cruz por causa da sobreposição do pé esquerdo pregado sobre o direito, e assim ficou fixada mesmo depois da deposição da cruz devido à rigidez cadavérica. Desse pormenor nasceu a lenda do “Jesus claudicante” ou “Cristo Coxo” que influenciou a cruz ortodoxa: ela é feita com o supedâneo (apoio dos pés) inclinado, como se idealmente estivesse na cruz um homem com uma perna mais curta.

Muitos ícones de Nossa Senhora, especialmente os mais antigos e célebres, representam-na com o filho nos braços, com os pés fora das vestes, um normal e outro torto e mais curto. Mais ainda, outras vezes está com uma perna sobre a outra, com a planta do pé virada e aparecendo, sendo o outro pé visto sempre de perfil, como evidente alusão ao Sudário. O pé defeituoso lembra a forma e a posição do pé esquerdo no Sudário.

Poderia esta imagem de São Cristóvão no Convento de Cristo estar influenciada por essa ideia Bizantina? Pode essa pintura mural ser coeva do tempo de Gualdim Pais e refletir influências importadas pelo mesmo, visto este ter estado em contacto com essa cultura religiosa? Acredito que sim, mas ainda estamos longe da questão central: Porque está São Cristóvão representado como cinocéfalo?

Cinocéfalo (do grego kunoképhalos: "que tem cabeça ou face de cão") é na mitologia greco-romana um ser com corpo de homem e cabeça de cão. Esta forma é bastante comum nas inscrições do Antigo Egito e a mais conhecida talvez seja a de Anúbis, o Deus com cabeça de Chacal.

Contudo, e para que se possa entender o quanto pode constituir uma ideia errada a associação de Anúbis e o Santo, ou mesmo uma associação astronômica, temos que perceber o que a mentalidade da época pensava sobre os cinocéfalos, relegando para outras discussões o que podem as recentes teorias herméticas ver nessas criaturas.

Obrigatoriamente temos que, sucintamente, remeter para o imaginário europeu e as visões sobre os “Novos Mundos” e suas gentes, não se confinando a designação de novos mundos aos recentes territórios descobertos nos séculos XV e XVI, quando ocorreram as grandes viagens marítimas e que de igual forma deram origem a informações povoadas de mitos e superstições.

Essas informações míticas e supersticiosas pertenciam quase todas à tradição grega: Ctésias de Cnido em 398 antes de Cristo, já escrevia sobre a existência de raças fantásticas como os ciápodas que possuíam um único e grande pé, os homens peludos, sem cabeça, e que tinham os olhos nos ombros, etc.; Plínio, em 77 depois de Cristo, também escrevia sobre os monstros e maravilhas que foram avistadas na Índia, como seres antropófagos (que comiam carne humana), seres andróginos (que possuíam os dois sexos), etc.

E tais informações foram sendo adaptadas ao longo do tempo. Porém, em geral, mantiveram-se quase sem alterações até o século XVI. Dessa forma pode-se entender o fato de os navegadores europeus terem visto sereias, antípodas (criaturas com os pés virados para trás), cinocéfalos (criaturas com corpo humano e cabeça de cão que comiam carne humana), ciclopes (monstro caracterizado por ter um único olho no meio da testa), e outras tantas criaturas monstruosas e maravilhosas, quando viajaram por regiões desconhecidas. Atente-se que estas ideias aplicavam-se não somente a todos que viviam para lá do oceano, mas a todos aqueles que viviam à margem do mundo europeu.

"Alguns destes etíopes são mouros ou indianos/ outros habitam no deserto/ outros se alimentam de toda a espécie de serpentes/ e simulam mais uma linguagem do que propriamente consigam falar/ alguns não têm cabeça/ mas antes os olhos e a boca no peito". E prossegue o autor descrevendo cinocéfalos como gente que vive quatrocentos anos; na Etiópia existiriam pessoas com quatro-olhos e "No sul da Etiópia haveria gentes que tem um só pé, muito largo, mas que são tão rápidos que assim podem perseguir os animais selvagens; e, com os pés grandes, podem-se proteger otimamente do calor do sol".

A galeria de seres já conhecidos seria agora completada e confirmada com um dado das viagens dos Descobrimentos, por exemplo, no novo mundo "o rei de Portugal, através das suas navegações, descobriu gente rude com cabeça de cão e longas orelhas de burro; o corpo é de gente com braços e mãos, as ancas e as coxas como um cavalo; e ruminam como uma vaca". O fantástico e o real coexistiam numa dinâmica e surda subordinação; e levará o seu tempo até que a galeria de maravilhas seja determinantemente eliminada pela ciência empírica.

Portanto, pode agora o leitor perceber que o comum europeu via nos designados cinocéfalos somente personagens oriundas de regiões menos conhecidas, seja a América, sejam as Índias ou mesmo África.

E de que forma se relaciona a lenda de São Cristóvão com estas criaturas que habitavam zonas distantes do centro do mundo civilizado?

Pelo que conhecemos da sua lenda, São Cristóvão era natural do antigo reino de Canaã, sendo, por conseguinte um Cananeu. Os Cananeus eram os habitantes do reino antigo de Canaã, situado no Oriente Médio, correspondendo aproximadamente ao território de Israel nos dias de hoje.
Porém, a história do pé torto ou do Cristo coxo levou-nos a procurar São Cristóvão no seio da cultura Bizantina. Segundo a mais antiga lenda conhecida da literatura grega (bizantina) e latina, São Cristóvão não era oriundo de Canaã, mas sim, e surpreendentemente, membro da tribo norte africana de Marmaritae. Foi capturado por forças romanas durante a campanha do imperador Diocleciano contra os Marmaritae e foi transportado para prestar serviço numa guarnição romana perto de Antioquia, na Síria, batizado pelo bispo refugiado Pedro de Alexandria foi martirizado em 9 de Julho 308.

A lenda latina de São Cristóvão sofreu ao longo dos tempos uma tremenda evolução e logo em data muito precoce se distancia da lenda bizantina. É importante ressaltar que existem consideráveis diferenças de pormenor entre elas e a latina (católica) representa um ramo separado da evolução do texto original grego.

A identificação de São Cristóvão como um membro da tribo dos Marmaritae é vital para o correto entendimento de uma passagem que tem causado mais problemas do que a maioria, a descrição da terra natal do santo, presente em todos os relatos mais antigos que sobreviveram do seu martírio, tanto em grego e latim, segundo o qual ele veio de uma terra de canibais e de seres com cabeças em forma de cão.

A tradição grega chegou a interpretar essa passagem literalmente, e é por isso que muitas vezes o vemos representado em ícones bizantinos com uma cabeça de cão. Em tempos, é claro, isso levou a uma reação contra o São Cristóvão. A tradição latina no início da tradução do grego para o latim chegou a traduzir literalmente o termo grego original "cabeça de cão" (kunokephalos), usando a palavra canineus (cabeça de cão). Entretanto foi alterado para se ler "cananeu" (Cananeus), e daí contar a lenda latina que ele era de Canãa.

É importante neste momento ressaltar que a descrição de Cristóvão, a partir da terra dos cabeças de cão não tem absolutamente nada a ver com o culto egípcio da cabeça de chacal, Anúbis Deus. A explicação real é bem mais prosaica e remete-nos para o que anteriormente tínhamos descrito: os habitantes civilizados do mundo greco-romano há muito habituados a descrever aqueles que vivem à margem de seu mundo como seres fantásticos, canibais, cabeças de cão e pior.

Assim, quando o autor do original relata o martírio de São Cristóvão, descreveu a sua origem na terra dos canibais e cabeça de cães, o que significa apenas que ele veio da borda do mundo civilizado Não sabia ele que as gerações mais tarde viriam a interpretar mal esta metáfora cultural de uma forma completamente literal.

De que forma pode ter esta história sido refletida na Charola em Tomar, terra tão distante desse mundo? Como ressalta da história de São Cristóvão, foi este martirizado em Antioquia, tendo se iniciado nessa mesma região o culto ao Santo. Por sua vez, Gualdim Pais quando esteve no médio horizonte, rezam as crônicas, esteve precisamente em Antioquia. Fica esta junto à região de Edessa, local que também já referimos como estando ligada diretamente à história do Sudário, designado ai como Mandylion. Edessa, na Turquia, local também muito ligado a São Tomé.

Portanto, não será de todo despiciente encontrar a representação de São Cristóvão como cinocéfalo nesta pintura mural, não como Anúbis ou como uma alusão astronômica de Orion, Sírios ou constelação de Cão, como afirma alguma literatura, mas sim como representação de uma imagem com a qual deve ter estado Gualdim Pais em contacto na região de Antioquia.

Talvez não seja este ensaio mais que uma fantasia que toma como ponto de partida uma ilusão derivada do estado em que se encontra a dita pintura, todavia, começa esta história nos pés e acaba na cabeça, o que pode levar-me a concluir ser esta uma história com pés e cabeça.

Nota de rodapé: Apesar desta história fazer a exploração de uma ideia generalizada na literatura mistérica das últimas décadas, deve ser encarada com muita ponderação. Não é vista pelos críticos da arte como um São Cristovão com cabeça de canídeo, tão somente uma ilusão da deterioração da imagem em virtude da sua antiguidade. Repare-se que é uma pintura mural a qual está sujeita às vicissitudes inerentes a esse suporte. Não é difícil de encontrar semelhantes imagens onde podemos imaginar as mais bizarras representações.


Fonte: http://blog.thomar.org/2010/02/sao-cristovao-da-charola.html