Cavaleiro

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Os créditos da ilustração são de André Marques - www.andre.art.br

Hegel e a historiografia oitocentista

Por: Adílio Jorge Marques

Introdução

O objetivo deste trabalho é mostrar de maneira breve a importância de G. W. F. Hegel (1770-1831) na formação historiográfica do século XIX e, consequentemente, na estruturação oitocentista da história das ciências. Busco trazer a concepção de que o pensamento político e o legado historiográfico de Hegel não podem ser analisados de maneira superficial. Para tal, analiso sua grande importância e influência nos seguintes autores: Leopold von Ranke, T. Carlyle, K. Marx e F. Engels (juntamente), e J. G. Droysen. De suas biografias e sistemas socio-históricos pode-se recuperar a contribuição do sistema filosófico hegeliano, com a marca do idealismo lógico e da dialética, seja aceitando, condenando ou propondo adaptações a esse mesmo pensamento hegeliano. Apesar de interpretar que Hegel legou-nos uma concepção de modernidade que deveria dar conta da totalidade, porém, fica entendido que seu sistema não é aqui interpretado como a superação de toda contradição política e histórica, e não é também a absolutização do destino humano e da realidade.

Discussão

Segundo M. Eliade há diferença entre memória (mneme) e recordação (anamnesis). A memória perfeita é superior à faculdade de rememorar. A recordação implica em um esquecimento que se manifestou no ser e tal perda, para alguns povos antigos, equivale a uma forma de escravidão, à ignorância e mesmo à morte. Pode-se dizer que os historiadores, ao longo da trajetória humana, buscaram a “memória perfeita” através de suas obras, cada um ao seu modo, tentando repassar à sociedade fatos cronológicos através de determinada visão de mundo. Vários sentidos moldaram esse “prisma”, fosse mais pessoal, imparcial, político, estético, social, econômico, etc. Há uma evolução desde a Antiguidade em termos de análise do que seja o registro da memória de uma nação, evoluindo a historiografia como método, arte, de trazer à luz a história. Esta sofre influência da cultura em que o pensador originante esteve imerso, e mesmo hoje fica mais claro que a interlocução com o texto também terá a contribuição daqueles que interpretam esse texto primeiro.
Dentro da ótica dessa influência metastisada, particularmente ao século XIX, encontra-se G. W. F. Hegel, considerado por muitos o filósofo de maior influência para o debate historiográfico de sua época. Despertou o interesse no saber de que a história pode ser usada tanto pelos que pensam e constroem as nações, como por aqueles que as dirigem, sendo uma forma, um vetor, para a análise de tudo o que se passou no tempo histórico (e que projeta o homem para fora daquele mesmo momento histórico próprio). Hegel propõe uma filosofia sistêmica (último grande sistema da modernidade), onde há a busca pela identidade através da dialética no mundo e nos povos. Coloca o pensar na totalidade, no saber absoluto. Projeta uma consciência crítica que, pela reflexão, gera um processo de formação do homem e o conhecimento.
Retomando a questão crucial da dialética, sabemos que com ela Hegel produziu um sistema que permite a apreensão da história, da filosofia, da filosofia da história e do próprio mundo. Lógicamente, há margem para os erros na história, mas a humanidade progridirá depois das experiências inerentes a um povo. E, por causa delas, pode-se postular então a existência de um Estado composto de cidadãos livres, que fazem parte do conjunto dialético humano. Um Estado Constitucional que é um poder que organiza e trás a todos o equilíbrio que conduzirá a um Bem geral. A razão faz emergir os ideais revolucionários da liberdade, igualdade e fraternidade. O pensamento apreende tudo, inclusive o ser, sendo a ação um movimento dialético do em-si ao para-si (dialética do interior e do exterior). Todo homem, ser político e cultural, passa a ser o exemplo vivo de que a contradição leva ao progresso. Logo, há valor para a contradição e o “negativo”. A negação não produz um objeto hegeliano histórico vazio de significados.
A evolução histórica hegeliana segue a lógica do devir heraclitiano, em eterno progresso de um Espírito objetivo que se desenvolve, realizado-se por sucessivas etapas até a plena consciência de si mesmo. Nesse caminho, o ser e o pensar não se opõem como realidades. O pensamento é real, e a realidade é sua expressão. O que pensou está no movimento do devir e de síntese universal.


Historiadores & Hegel

Leopold von Ranke (1795-1886): De estilo conservador e opositor ao sistema hegeliano e também marcante pensador para a história, é considerado por muitos como o mentor da “história cientifica” devido ao fato de introduzir, através do uso prioritário de fontes primárias, o método científico das ciências exatas (como a física oriunda do newtonismo) na elaboração da pesquisa histórica. Na Universidade de Leipzig esteve ao lado do professor Fridrich Savigny (que propunha as diferenças nos vários períodos da História) em oposição aos seguidores de Hegel (que defendiam o devir constante de uma “história universal”).
Havia uma diferença fundamental entre a posição Ranke e a visão hegeliana. Para aquele, Hegel usava uma mesma interpretação para culturas muito diversas, onde os valores mudaram muito ao longo da história. Para conhecer realmente o que um autor queria dizer aos futuros leitores só haveria uma forma que não disporia erros ao estudioso: o uso temporal e cultural das fontes primarias. Quanto mais se usam aos fatos, mais verídica será à história. Negou, assim, a existência ou possibilidade de uma filosofia universal da história hegeliana, achando que tal filosofia desconsiderava a ação direta dos homens (e seu livre arbítrio) na hstória. Não havia como indicar por fatos que existia um Espírito absoluto para a história, ou seja, que um mero conceito pudesse delimitar o pensamento e a razão dos povos. Em Ranke, cada nação possui um ethos particular que serve apenas aquele povo. Como exemplo, cita que os ideais da Revolução Francesa não serviriam ao Estado Prussiano, onde a cultura e a mente dominante são diferentes da francesa. Talvez fique marcado neste fato a filosofia romântica alemã como resistência política ao movimento Iluminista francês. Ranke não percebe que Hegel coloca a relação da história com a filosofia e também do pensamento com o real neste mundo factual. Tal mundo não “está fora” da história, em um mundo platônico inteligível.

Thomas Carlyle (1795-1881): Propõe que a História pode ser interpretada através da vida dos heróis, que representam a encarnação em um homem importante dentro de uma cultura. As massas e o herói seguem cumprindo uma missão como no Espírito Absoluto hegeliano num devir marcante. A teoria do surgimento de um ser que unisse o abandono (o estar acima) dos valores do bem e do mal com um ateísmo político foi conseqüência do culto ao gênio humano professado pelos primeiros românticos. A “teoria do gênio” vai ser colocada também por Arthur Schopenhauer (1788-1860) na obra “O mundo como vontade e representação”, quando associa o homem genial às “alturas do Monte Blanc”, sendo que do alto o gênio contempla os demais da humanidade. Esse homem está ligado a um fim objetivo, assim também a figura do Super-Homem nietzscheano (F. W. Nietzsche, 1844-1900, na obra “Assim falou Zaratustra”). A figura do herói que Carlyle associa à história está presente recorrentemente no saber humano. Para o século XIX e para Carlyle, tal herói é (ou representa) a encarnação daquele Espírito na história como prevê Hegel. São os ideais e sentimentos de uma época cultural e histórica que encarnam em um quase mítico personagem, mostrando a luta social por que todos os que representa estão passando.
O Espírito Absoluto serve-se daquele homem para realizar atos superiores quase inimagináveis, grandes destinos. As massas e o herói seguem heraclitícamente cumprindo uma simbiótica missão. É possível dizer que as doutrinas coincidentes de Hegel e Carlyle também se orientam histórico-teleológicamente. A primeira dentro de um idealismo e no Espírito Absoluto, com o destino final dos povos através da história; em Carlyle, na exploração dos sujeitos, falando de homens providenciais a quem corresponde o direito de governar as sociedades levando-a à felicidade e concretude de ideais.

Karl Heinrich Marx (1818-1883) & Friedrich Engels (1820-1895): São considerados seguidores da chamada corrente “hegelianos de esquerda”. No posfácio à segunda edição de 1873 de “O Capital”, K. Marx escreve: “Meu método dialético não só é fundamentalmente distinto do método de Hegel, mas é, em tudo e por tudo, a antítese dele”. Apesar de tal afirmação, muito da teoria econômica e social do socialismo marxista deve-se a questões identificáveis no sistema hegeliano: o movimento de efetivação da liberdade na vida comunitária, onde a razão está na consciência de seus membros; a reconciliação da vontade particular com a vontade universal; a existência da liberdade, guiada por um sistema de produção. Aqui não há poucos heróis, mas o movimento coletivo das massas.
A partir do “Manifesto” em 1848, Marx e Engels aprofundaram suas concepções sobre a nova sociedade que deveria nas anteriores bases estruturar-se. Marx relaciona para isso três correntes do pensamento que lhe são contemporâneas: a dialética hegeliana, a economia política inglesa e o socialismo. Para ambos a dialética hegeliana deveria ser aplicada ao mundo real, não possuindo base ou interesse “espiritual” (socialmente falando), mas sim um fim material e econômico. O materialismo dialético surge como conceito central da filosofia marxista em uma inversão da proposta hegeliana. A idéia de autonomia da ciência está presente, questão que surge em um ambiente de consolidação da nova universidade alemã depois da fundação da Universidade de Berlim (1810).
Engels valorizou, entretanto, a obra de Hegel no prólogo de 1888 a L. Feuerbach, propondo o fim da filosofia clássica alemã. Engels sabia que não poderia ignorar o “degrau” deixado por Hegel, citando-o quando propôs um lado revolucionário ao método dialético. Engels vê que em Hegel a dialética não passaria do “automovimento” de um mero conceito geral (crítica à posição conceitual). Sobre esta questão é que a inversão se tornava necessária, eliminando qualquer idealismo e tornando Hegel realmente inserido na história prática. Surge um caminho para que a dialética passe ao conhecimento do que deveria ser a Verdade, utilizada para o conhecimento de uma verdade objetivada. A natureza é regida por leis que estão em eterno vir-a-ser, sempre em movimento que o homem buscará entender pouco a pouco.
O método hegeliano original não serviria por ser considerado idealista demais. Marx e Engels chegaram até a história a partir do entendimento desta como teoria científica, propondo o materialismo histórico e a ruptura com a história idealista romântica como vinha sendo estudada até então.

Johann Gustav Droysen (1808-1886): Foi aluno de Hegel, o que fornece a Droysen a influência hegeliana em alguma medida. Droysen foi historiador que se formou em um ambiente de mudanças na política e na economia, além da filosofia, música e literatura, o que talvez tenha tornado mais compreensível o conteúdo dialético. Estudou a história na dialética sujeito/objeto, onde essa história deveria dar sentido para os fatos ao longo das eras. Buscou deixar mais clara a separação entre as ciências do espírito e as ciências naturais.
Importante atuação na fundamentação sólida da hermenêutica antes de Dilthey, Heidegger e Gadamer. A questão da recordação, como colocado no início deste texto, é central para a constituição de uma consciência histórica fundada na hermenêutica desde Droysen: a dialética do recordar/apreender sobre um texto como meio de estabelecimento de continuidade. É possível superar o caráter fragmentado dos vestígios e, a partir de semelhanças não evidentes no texto, estabelecerem uma nova unidade inteligível.
Transferindo para a história surge o “percurso” do Espírito Absoluto, de onde propõe a Bildung: formação ou cultura no devir, conceito inovador para o entendimento humano da história e na história. É a cultura de um povo que se estrutura na construção dialética.

Conclusão

A importância da compreensão historiográfica no entendimento dos povos fica marcada, no século XIX, por algum tipo de noção de progresso dada pelos historiadores citados, onde Hegel esteve presente como referência em maior ou menor medida. A busca pelo homem e pelo Estado perfeitos chegarão até nossos dias, comprovando ainda mais sua importância no pensamento humano. Hegel produziu no século XIX uma nova forma de pensar e ver o mundo a partir das influências que também sofreu de Kant, Gothe, Descartes, Fichte e Schelling.
Carlyle mostra a marca imanente do sistema hegeliano com os heróis da história que encarnam o Espírito Universal, e na obra autobiográfica romanceada “Sartor Resartus, and On Heroes, Hero-Worship, and the Heroic in History”, Carlyle cita Hegel nos capítulos 3 e 10, mencionando seu sistema filosófico e deixando claro seu conhecimento sobre Hegel e a influência que recebeu.
O historiador L. von Ranke não cita textualmente Hegel em suas obras, mas sua oposição ao sistema hegeliano é por demais conhecida pela sua própria atuação em vida, e também por comentadores contemporâneos e atuais.
Jean Léon Jaurès é um exemplo, através de Marx e Engels, de outro pensador político que possuiu forte marca do hegelianismo de esquerda, além Marx e Engels aqui citados. Hegel também participou do pensamento de V. I. Lênin (1870-1924), sendo a Revolução de 1917 outra marca sua na história do século XX.
Droysen foi historiador cuja vida marca o século XIX e que ainda teve a impressionante sensibilidade de, como aluno de Hegel, herdar questões da cultura intelectual do século XVIII e início do XIX, antecipando ainda outros problemas que serviram também de marca para o pensamento contemporâneo.



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