Cavaleiro

Cavaleiro
Os créditos da ilustração são de André Marques - www.andre.art.br

Domingos Vandelli e a ciência luso-brasileira

Por: Adílio Jorge Marques.

O avanço do conhecimento europeu deve muito aos naturalistas. Dentre eles destaca-se este que foi um dos mais prolíficos, com trabalhos em áreas variadas que vão do social ao econômico, contribuindo para a gênese da taxonomia moderna.



Domingos Agostinho Vandelli (1735- 1816) foi um naturalista, denominação que se dava aos cientistas entre os séculos XVII a XIX. Atingiu fama ao dar a Portugal muito da organização iluminista que o país conseguiu entre os séculos XVIII a XIX. Seu pai, Girolamo Vandelli, fora médico e professor na Universidade de Pádua, sendo sua mãe conhecida por Francesca Stringa. Tornouse doutor em Filosofia Natural pela Universidade de Pádua, Itália, sua terra natal.

Publicou muitas obras sobre os mais variados assuntos naturais, econômicos e sociais, tendo consolidado seu nome na História pelo trabalho em Portugal, em especial na Universidade de Coimbra, inicialmente pela publicação do "Dicionário dos Termos Técnicos de História Natural Extraídos das Obras De Lineu" (1788), assim como pela edição de "Florae Lusitanicae et Brasiliensis Specimen", obras de referência na Europa.
Uma das características mais marcantes do naturalista Vandelli foi a de converter temas como agricultura e natureza para uma finalidade prática, visando assim a recuperação dos reinos europeus, em especial Itália e Portugal. A fisiocracia sempre esteve presente em suas memórias e ensaios como na demonstração da realização prática dos estudos efetuados no campo das ciências naturais, ou seja, na passagem direta do saber teórico para a práxis. Os procedimentos para conhecer os "segredos da natureza" deveriam estar ao alcance do máximo possível de pessoas para torná-los disponíveis ao uso daqueles que estivessem em condições naqueles tempos difíceis no que tangia à educação. Coimbra em especial marcou o local inicial na trajetória de Domingos Vandelli em terras lusitanas.

O percurso do naturalista é bem elucidativo da simbiose entre o domínio da história natural e as preocupações de natureza econômica que o envolviam, assim como norteavam seus colegas daquela época. Vandelli adotou tanto os princípios fisiocráticos italianos das Escolas de Milão e Nápoles quanto os princípios do liberalismo inglês. Nas décadas que se seguiram ao terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755 e que destruiu grande parte da cidade, mestres como ele e outros estrangeiros contratados que chegavam a Portugal sabiam que tinham por missão transformar a cambaleante economia do país.

Perceberam que o desenvolvimento da indústria, ou industriosidade (compreendida aqui como qualquer atividade empreendedora com fins comerciais e científicos) do país seria a salvação modernizadora do reino português, já atrasado em relação aos ingleses e franceses, por exemplo. Era importante e fundamental promover novas técnicas nas várias culturas, visando uma maior produtividade. A aclimatação de novas plantas, por exemplo, era vista como atividade científica necessária, pois poderiam ser úteis ao mercado e às artes em geral, principalmente num reino tão vasto (incluindose, claro, todas as colônias além-mar, como o próprio Brasil).

Desde 1759, Domingos manteve contato com o renomado botânico, zoólogo e médico sueco Carlos Lineu (1707-1778), reconhecido mundialmente pela criação da nomenclatura binomial e da classificação científica que estudamos em Biologia, na qual utilizou os princípios da classificação racional iluminista. Lineu é assim considerado o pai da taxonomia moderna e foi um dos fundadores da Academia Real das Ciências da Suécia, de grande importância para as ciências da Europa.

Domingos Vandelli dedicou-se especialmente ao Museu e ao Jardim Botânico de Coimbra em conjunto com o físico e também italiano Giovanni Dalla Bella.

Veja o restante da matéria no site da Revista LEITURAS DA HISTÓRIA, nº 30, que esteve nas bancas no mês de junho/2010:

http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/30/imprime174333.asp



Aspectos do amor platônico na obra “O Banquete”

Por: Adílio Jorge Marques


“O Banquete” (em grego antigo Συμπόσιον, Sympósion) é um diálogo platônico escrito por volta de 380 A.E.C.. Constitui-se basicamente de uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor enquanto Eros. Este texto é, juntamente com “Fedro”, um dos dois diálogos de Platão em que o tema principal é o amor. Em um trecho do Sympósion, encontro entre conhecidos, surge Erixímaco com uma crítica a Heráclito (187ª). O discurso de Erixímaco explicita os contrários na existência humana, dizendo: “Ora, é grande absurdo dizer que uma harmonia está discordando ou resulta do que ainda está discordando” (Platão. O Banquete. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 120). Assertiva que está em contraposição a Heráclito, para o qual o um é diferenciado de si mesmo, mas unindo-se a si próprio e revelando o processo da vida. Para Heráclito, a discordância de si mesmo leva paradoxalmente à concordância. Heraclitianamente, a simultaneidade de duas ações contrárias é sempre posta em relação contínua.

Erixímaco critica a proposta heraclitiana da harmonia “ser desarmônica”, ou que se constitua de opostos, pois que a harmonia se formaria apenas de altos e baixos, como na unidade musical. Na verdade, para muitos filósofos e pensadores, tal afirmação não irá opor-se ao que Heráclito escreveu, pois na harmonia também faz parte a diferença. Para Heráclito o que há é o princípio de que a virtude está sempre na justa medida de tudo, e quanto ao excesso, não há entre opostos harmônicos, com o que não concorda Erixímaco. Para este há um Eros sadio que traz a harmonia, a concórdia e o equilíbrio; há ainda o Eros insano, que é não necessariamente vulgar, mas que em tudo se opõe ao bom Eros. O primeiro é o responsável pela saúde e pela música: a conciliação entre os diferentes humores do corpo e entre os diferentes sons. O segundo Eros é o do excesso e do desequilíbrio, o responsável pela doença e pela cacofonia. Conhecedor dos dois amores e seus efeitos, a tarefa de Erixímaco na obra “O Banquete”, como médico, é alinhar-se ao bom Eros, restabelecendo assim a harmonia nos corpos e mentes.

            Existem também características do método filosófico socrático durante a formulação do princípio geral do Amor (diálogo Sócrates-Agatão). Sócrates dizia que Eros era um daimon, mediador entre os deuses e os homens. Ainda segundo Sócrates, diz-se que assim mesmo há sempre a falta, a busca pelo belo, buscando o homem sempre alcançá-lo, e que quando o conseguimos contemplamos o belo por toda a vida. Sendo assim, o filósofo em si é um daimon, pois está sempre em busca da verdade e quer sempre alcançar o verdadeiro conhecimento para chegar à imortalidade. Também a ironia aparece neste discurso, como em 199d (p. 147), 201c (pp. 151; 153), marcando mais uma vez a forte presença socrática na obra platônica. A importância do amor, para Sócrates, está na afirmação do “não saber nada, a não ser a respeito do amor”. O amor socrático já pressupõe a melhora do próprio ser em função do caráter daimônico, resultado da inspiração erótica.

Sócrates mantém sua característica de perguntas ao interlocutor, como em 199ª (p. 146), quando interpela Agatão, buscando mostrar a preocupação exclusiva da aparência em detrimento da realidade. Agatão reage como um discípulo ou um amigo de Sócrates, falando abertamente da ignorância que descobre em si mesmo. Talvez o objetivo socrático fosse que seus discípulos se apaixonassem por ele, mas que não o tivessem apenas como objeto. A insatisfação sexual final, o realce da falta inclusa em todo desejo e todo amor, tinha como provável finalidade a ocorrência da identificação com o próprio Sócrates. Ao invés de serem possuídos ou possuírem fisicamente Sócrates, deveriam elaborar esta impossibilidade, passando a ser como ele, em uma espécie de “ressonância interna”, amando o que ele amava: a Filosofia.

O objetivo socrático era a instauração da metáfora do amor; passar do ter ao ser. E que os discípulos o substituíssem como ativos e desejantes, procurando (como ele) a coerência do significante como única forma de se atingir a verdade. A falta do outro, implícita em toda manifestação do Amor, seria força criadora do espaço para o encontro filosófico.

            Existem mais argumentos que conduzem à formulação do princípio da falta durante o diálogo entre Sócrates e Agatão no Banquete de Platão. O amor possui um objeto direto que levará ao argumento da falta. Busca-se o amor de algo que se deseja e de que não se é possuidor, onde o oposto é estar satisfeito com o que se tem, mas deve-se manter o que se conseguiu no amor, e isso gera que devemos continuar a ter no futuro aquilo que se conquistou para não perdê-lo (200d, p. 149). Logo, os filósofos, enquanto amantes da sabedoria, desejam-na eternamente, talvez nunca conseguindo o status pleno do “ser sábio”. “Só sei que nada sei”, disse Sócrates. O desejo de ter para o futuro é o desejo de ter sempre. Daí associar-se a ideia do bem com a de continuidade, a qual será também ideia referida ao homem, ser mortal, que assume a feição de imortalidade.

Sócrates faz uma proposição de que é amigo do belo e do bom, o que não é nem bom nem mau. A presença do mal no que não é bom nem mal é o que faz tal desejar o belo e o bom, e assim, ausente o mal, o belo e o bom não seriam capazes de suscitar o amor. O amor é carente daquilo que ama, não tem aquilo de que é carente, e não é aquilo que não tem. Se, por conseguinte, seu objeto é o que é belo, ele já não é belo. O belo é então o objeto do amor.

            Como se conectam no discurso filosófico sobre o amor o desejo de ser feliz e o desejo de imortalidade? No objeto do amor procura-se o belo e a felicidade. Ocorre que o belo é imortal. Se buscamos no belo a nossa felicidade, faltando aquilo que não possuímos, nós mortais acabamos por desejar e gerar a imortalidade. E o desejo impulsiona em direção à beleza, à sabedoria, à justiça, e tudo mais quanto nos ofereça o reflexo da ideia do bem. Quando este “topo” é alcançado, porém, revela-se uma espécie de miragem. Segundo Diotima, participante desta discussão platônica, nos seres humanos existe um desejo mais profundo: o da imortalidade. Eros seria então considerado como o desejo de perpetuação, porque as pessoas o veneram, dado que ele é o grande impulsionador deste desejo, uma vez que é o deus da beleza, e o ato de procriar é belo. E amar é desejar ser feliz.

Aos seres humanos só restaria uma saída, levados pelo desejo: procurar as formas de imortalidade reservadas aos mortais, mas que os aproxima do dom máximo dos deuses. Ou seja, a criação. Em geral se denomina criação (ou poesia) tudo aquilo que passa da não existência para a existência. Todos os homens desejariam procriar segundo o corpo e segundo o espírito. A procriação e o nascimento são as coisas imortais num ser mortal. A renovação conduz à felicidade e à imortalidade do corpo. Muitos procriam através do corpo – a imortalidade através dos filhos (a criança que substitui os velhos), e muitos através do espírito, com a imortalidade pela criação da filosofia, da arte e, a mais importante para Platão, da constituição das leis da pólis com a arte política. O belo continua tendo sua função pedagógica: conduzir da beleza de um corpo à beleza de todos os corpos, ao conceito de beleza como modelo, à descoberta do mundo perfeito das ideias e do Bem como ideia suprema. Existe uma visão heraclitiana da realidade com a compreensão das transformações. Se os homens buscam neste mundo a felicidade e a glória, geram para si a imortalidade.

           Os discursos – logoi – com o propósito de educar, isto é, de fazer “espiritualmente” uma criação, são o fruto da geração de um novo ser. Ser este que garante ao seu criador uma imortalidade desta vez ao nível espiritual, nível da alma. A condição do amor é o desejo do bem maior, isto é, da virtude. Este bem é algo que transcende a própria condição mortal do homem. É através de Eros que o indivíduo pode ir ao encontro do belo, visto que o amor propaga-se nos seus descendentes. Por esse motivo, o ser humano preocupar-se-ia em ter frutos de sua união conjugal, pois seu desejo de imortalidade é visto quando sua carga genética passa para seus herdeiros, continuando ele vivo após sua morte em um ciclo infindável, repassando sua herança para outras gerações. Existe um sentido em que podemos afirmar que a “scala amoris” da sacerdotisa Diotima é um método de universalização. Os degraus da escala mencionada no livro de Platão são na realidade três (210ª, p. 171), cada um deles dividido, por sua vez, em dois momentos, na busca pela contemplação do Belo em si.

Segundo Esteban Reyes, pode-se buscar uma associação com o progresso através de degraus ascendentes. No primeiro degrau o amante irá se afeiçoar a um corpo belo e então fará belos discursos. Depois verá que a beleza de um corpo é “irmã” da beleza de todos os outros, e assim, passará a amar todos os corpos belos. É o amor físico não individualizado.

O segundo degrau permitiria passar do amor pelos corpos ao amor pelas almas. O discípulo de Eros afeiçoar-se-á a uma alma em particular, para depois descobrir a beleza moral, a dos atos, que torna belas todas as atividades e comportamentos humanos. Em uma terceira etapa, o iniciado passará dos atos às ciências. Aqui, também inicialmente, o amor será o amor das particularidades das ciências para, em seguida, expandir-se em um amor pela ciência ou saber em geral, e alcançar a ciência única, a da Beleza. Revela-se a beleza eterna e única, o Belo em si e por si, contempla-se a verdade nela mesma (Esteban Reyes Celedón. Do Eros nos ensinamentos de Diotima de Mantinéia: O Amor, uma das vias possíveis para o filósofo atingir o Inteligível, a imortalidade. Acesso em julho de 2006: http://www.geocities.com/profestebanpolanco/eros.htm).  



HEMORRAGIA

(Uma lúcida alucinação)


À dor que o verdadeiro brasileiro tem dentro de si.
A todos brasileiros que sofreram nos cárceres.

I

Ano santo da graça
de mil novecentos e oitenta.
Trevas habitam no mundo
íntimas da existência humana,
da sua inconsistência.
São intensas, imensas, infindas
autênticas, patéticas e reais
verdadeiras e inconfundíveis.
São bonitas para o que são,
são apenas  TREVAS...
II
Ronda o espectro do medo,
o não das trevas envolventes,
mas das sombras que causaram.
Do frio destas nódoas
onde ausentou-se o sol,
e verdades purgaram como musgos
pequenos, úmidos, acobertadores,
envolvendo em seus mantos vivos,
alimentando-se do ruim e do pouco,
tentando inocuamente ser.
        
III
Em trevas cresceram mentiras,
floresceram nos jardins subterrâneos
adubados com suor, urina, vômito
fezes, sangue e coragem,
acalantados pelo urro visceral
das entranhas rasgadas
em pérfidas duzentos e vinte carícias.
Alma alagada de ódio,
língua ferida triturada nos dentes.

IV
Tensão apavorando o temor,
a cabeça cintada explodindo
cagada da inteligentia universal
salpicando dor às retinas...
Os desesperos dum coração sangrento,
hemorrágico – hemofílico,
desunido em  sílabas distintas
A – MAR – GU – RA – DO,
afogado em profundezas fétidas,
abraçado por sargaços gosmentos.

 

 V

No clarão explodem os gametas
marcha rude um exército de Pinóquios
armados de mentiras e escopetas
torturando de mágoas os Gepetos,
que perderam seus filhos das celas,
sem choros, sem reza,  nem velas,
nem fitas verdes ou amarelas.
Apenas a moldura tirânica
no álbum da liberdade:

P R O C U R A D O S !


VI
Agonia da ave esguia na Ribeira,
Iara morta na Vitória – Régia,
Buriti Luminoso tremulando contra o céu,
mudá-LA  MARCA o tempo e história.
A mancha desordena, é o retrocesso!
A bandeira é pano, lábaro de revolta,
Ousar Lutar!    Ousar Vencer!
Cada eco seco atingindo irmãos
passeia impune no brilho das estrelas,
perfila-se na raiva do cão,
masturba-se na vergonha da farda.
  
VII
No quedaço do martelo
(fecha-se impune) mais um dossiê de mentiras,
expirar solitário e moribundo do ideal,
crueza dos sofismas,
massificação das balelas,
Leros – leros e quás – quás – quás.
Confinamento em argamassa,
painel das inconstitucionalidades.
público escárnio desinformado,
nevasca de confetes e serpentinas.

VIII
Saci – Pererê numa calça jeans
teefepeia nas salas de aula
com marmelo e água benta.
Suicida nativo das raízes,
Caapora  hipotecou a vara de catetus,
que tabaqueia Half and Half,
desfila numa montada em Manaus.
Mula - Sem - Cabeça padece de enxaqueca...
Às oito, a novela deforma e domina,
e na esquina o Mengo é sempre campeão.

IX
O jovem na plenitude do seu corpo
não se explica, nem se entende
como parte do processo imposto.
Suas atenções são folegos  e bíceps,
suas habilidades são de equilíbrio...
ele patina, surfeia e windsurfeia,
de skate, despenca ladeira e geração abaixo,
bonito é o macacão de listras, a tatuagem,
e... no fundo perdido da gaveta,
virgem, amarelece o Título Eleitoral !

X
Na consciência do povo o monstro
Xifódimo: Terror e Violência,
forjado na bigorna das casernas,
dos porões mofados onde, em corolários,
bestialidades sodomizavam aos moços,
empalavam sadicamente a rapariga,
em nome Fiel da justiça,
da Ordem e do Progresso,
da Segurança e da Família,
da paz e do amor...

XI
Açoitados com sais,
coroados em espinhos,
arranhados por farpas,
agitados em choques,
chutados por coturnos,
afogados em amoníacos,
queimados por brasas,
arrastados em cimentos,
atirados dos helicópteros,
Empilhados em covas rasas.

XII
R astilho da esperança
E mbrião imortal da humanidade
V italidade necessária
O timização dos povos
L iberdade das mentes
U niversalidade das razões
C anções uníssonas
O des às igualdades
E pífrase das leis
S alvação do HOMEM.

© Gabriel Ribeiro
       -  1980  -
Blog “Beco das Bicas”: http://becodasbicas.blogspot.com/

A partir do texto de Kant “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?” é possível fazer da restrição da liberdade civil a condição para a liberdade de espírito de um povo?

Por: Adílio Jorge Marques


É possível fazer da restrição da liberdade civil a condição para a liberdade de espírito de um povo? Kant coloca no seu profundo texto “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?” questões procedimentais do homem na busca de seu esclarecimento (“Aufklärung”) enquanto ser, e que ele define como sendo algo da sua época. A análise a partir do qual, logo no início do texto, Kant nos diz que “a preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens,…, continuem… de bom grado menores durante toda a vida”, indica que para se atingir o progresso, o esclarecimento, algo deverá ser feito pelo buscador.

A tendência dos homens e mulheres é manterem-se na inatividade, inertes e centrados na busca do que entende ser o melhor, mas apenas para si e não para toda a comunidade. Kant afirmava que os homens chegam mesmo a “criar amor” por sua menoridade, e que mesmo as fórmulas do uso racional são “grilhões” para se manter os homens nesse estado. Kant, porém, diz que a liberdade é um fator que pode tornar perfeitamente possível o esclarecimento.

Vejamos. Todos podem alcançar as luzes sobre qualquer assunto, embora a grande maioria, segundo Kant neste texto, não queira praticar ou desenvolver tal condição moral, seja por comodismo, oportunismo, medo ou preguiça. Em seu processo social de formação todo indivíduo vive uma situação de menoridade em algum momento ou fase de sua vida. Aqui, a menoridade é natural, pois se confunde com imaturidade, talvez como a imaturidade da semente em relação à árvore que ela pode vir a ser, já que nenhuma pessoa nasce pronta. Kant questiona aquelas autoridades, como as religiosas, que através do medo ou do constrangimento aprisionam os sujeitos em menoridade quando já teriam condições intelectuais de não estar nessa situação.

Logo, ser esclarecido não é apenas ter um "profundo" conhecimento sobre algum assunto, mas unir tal passo com a conquista da autonomia – este sim, um passo moral fundamental, mas apenas dado por uma minoria dos homens. Todos, potencialmente, podem "esclarecer-se", já que possuem capacidade de pensar, mas nem todos conseguem superar o medo, a preguiça ou o interesse particular para alcançar a condição de esclarecimento. Ou podem adiar tal condição. Kant apenas adverte que não cabe a renúncia ao esclarecimento, de si e principalmente dos demais, pois seria “ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade”.

A questão da liberdade aqui surge como exigência para o esclarecimento. Temos a liberdade mais inofensiva, e que é o uso público da razão. E neste ponto começa a notar-se uma resposta à questão acima, quando Kant nos coloca: “Qual limitação não impede o esclarecimento, mas o favorece?” O filósofo nos responde que é no uso público da razão humana, que sendo sempre livre, levará a luz para entre os homens. Ou seja, quando um homem tenha atingido um grau de sabedoria fará assim uso de sua razão para um público já letrado, o que Kant chama de “verdadeiro público”. Ou seja, o mundo levando a sociedade a uma melhor condição, tal qual aquela que ele mesmo atingiu.

A obediência aparece como necessária para que um governo funcione nas suas atividades para o povo, mantendo desta forma organizado o Estado em suas finalidades públicas. Kant descreve os exemplos da obrigação do sacerdote em fazer seu sermão, ou quando o cidadão não deve recusar a pagar seus impostos, ou mesmo o subalterno que não deve questionar as ordens militares de seus superiores. Existe uma ordem lógica kantiana para se chegar racionalmente na liberdade.

Temos a liberdade de criticar as coisas em relação às quais estamos aptos pelo saber, porém, somente quando se vive uma condição de autonomia funcional, condição para o uso público moralmente aceitável da razão. Ressalva-se que, enquanto sábio em seu agir, tem também o dever, e é sua obrigação, em fazer conhecer do público quando surge o erro em seu âmbito de atuação.

A obediência à razão verdadeira de Kant não afasta o esclarecimento, apesar de parecer que ele demonstre a existência de “tutores”, e com isso, de uma hierarquia funcional entre os homens. Tais sabedores de suas funções tiveram a liberdade de atingir este estado, e continuam com a liberdade de passar ao mundo seu conhecimento com a atuação da verdade e da razão.

Em relação direta à questão proposta acima, talvez seja possível fazer da restrição da liberdade civil uma condição para a liberdade de espírito de um povo. Kant mostra a obediência e a hierarquia que muitas vezes surge como um fator para a manutenção da ordem pública. Isso nos faz pressupor que a educação seja a maneira de se manter em cada ambiente, em cada situação, as condições para que os homens e mulheres atinjam o esclarecimento de seu ser e que transbordará para o restante do povo (mundo). No antepenúltimo parágrafo Kant escreve: “Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado”.

O próprio Kant enxergava que não seria lícito a um Estado livre ousar a sair de uma dessas condições – o que ele mesmo chamou de “um paradoxo”: quando um povo tem um grau maior de liberdade civil surgem limites que ele chama de intransponíveis, obediência a regras e leis para que a ordem seja mantida. Os homens públicos através do seu saber são marcadamente atuantes.

E um grau menor a liberdade civil permite o espaço para uma maior expansão das atitudes do povo, guiados que são pelas regras e pela obediência a elas. A maior restrição permite o controle do estado vazio ou insuficiente de razão. Kant acredita que, neste último caso, o povo seja cada vez mais capaz “de agir de acordo com a liberdade”, chegando mesmo a atuar no governo do Estado através dos princípios que o mantém. Isso porque o homem chegou a um novo estado de si: ele é esclarecido, e não mais uma simples máquina.

Talvez Kant queira mostrar também, com tal frase, a última do texto, que apesar de vigorar na Europa de sua época a idéia de que tudo poderia ser explicado e determinado com a razão e o saber científico, o homem teria condição de ser colocado em uma posição diferente na escala natural. Com a possibilidade de um Estado justo (liberal e onde haveria a liberdade para as escolhas individuais), sainda assim da "menoridade" e atingindo a "maioridade" com o conhecimento, sem depender das instituições externas para tal fim.


Devemos ousar saber (sapere aude), segundo Kant!



*Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência no mundo luso-brasileiro e história das Tradições.

Explicando o modelo padrão de partículas da Física Moderna

Por: Adílio Jorge Marques


O modelo padrão, como é conhecido o modelo vigente de partículas, é chamado por muitos Físicos de “a nova tabela periódica”, pois mostra o arranjo dos constituintes últimos da matéria de maneira simples à primeira vista. Sua importância em descrever a maioria dos fenômenos da escala microscópica atinge praticamente todas as principais áreas da Física, onde através do estudo das partículas elementares os cientistas buscam explicar desde o mais ínfimo da matéria até o macrocosmo com os elementos que o compõe (estrelas, galáxias, buracos negros, explosões de supernovas, entre tantos temas interessantes), assim como todo o Universo desde sua Criação pela hoje aceita Teoria do Big Bang.

O átomo teve uma fascinante história desde os tempos antigos ente os atomistas gregos até as atuais descobertas experimentais de altas energias. Sempre foi motivo de grandes discussões em várias etapas da história científica. Em nossa Ordem estudamos a expressão da energia espírito e os filósofos antigos e recentes, podendo acompanhar bem o breve resumo a seguir. Desde Tales de Mileto (640-562 a.C.) que se busca explicar como a matéria se formou a partir de determinados elementos. Os gregos tinham um ideal de ordem subjacente à Natureza naturada e que foi definido por Cosmos. A idéia de átomo, uma palavra também grega, foi elaborada por Demócrito (460-370 a.C.) e queria dizer “indivisível”, ou seja, o mínimo da matéria que se unia para formar tudo o que conhecemos.

A Idade Média praticamente abandona a idéia atomista, uma época muito religiosa e de domínio clerical onde a filosofia dominante era a aristotélica. Esta abominava a idéia de vazio ou vácuo, onde para Demócrito eles continuavam a existir e em contínuo movimento.

A Ciência mais parecida com o que conhecemos adquire grande impulso com a Renascença, onde principalmente destaco Leonardo Da Vinci (1452-1519) e Galileu (1564-1642). O primeiro, enquanto genial e fantástico médico, inventor, artista, engenheiro, tecnicista, entre tantas habilidades para a sua época e para a atual, e que mostrou que o homem podia dominar muito das forças naturais com o saber adquirido. Galileu é apontado por muitos como o responsável pela revolução científica, marco histórico que separa a Física antiga da atual, pois a partir dele as idéias passaram a ser também testadas experimentalmente saindo do puro mundo das idéias. Sir Isaac Newton (1642-1727), um dos maiores gênios da humanidade de todos os tempos, aceitava o atomismo sem maiores questionamentos, até porque seu maior foco de interesse estava na atração entre os corpos materiais e apenas na óptica ele aprofunda-se mais na questão, onde via a luz de forma corpuscular. A Teoria Cinética dos Gases da segunda metade do século XIX desenvolve-se a partir da idéia dos átomos e das leis newtonianas. Até o final deste século o átomo não tinha estrutura definida, mas com o desenvolvimento da Eletricidade e com os estudos em 1808 do químico Dalton (1766-1844) a idéia de átomo ganhou mais força. Mendeleev (1839-1907) listou posteriormente a tabela periódica conhecida da Química.

Joseph John Thomsom (1856-1940), em 1897, obteve a primeira evidência experimental dos elétrons e Ernest Rutherford (1871-1937) em 1911 propôs um modelo para o átomo formado pelos elétrons negativos orbitando um núcleo central de carga positiva. É de Rutherford a idéia de um modelo que é análogo ao sistema planetário e que conhecemos até hoje em muitos livros escolares ou mesmo de divulgação científica, mas que além de não funcionar fisicamente não correspondem à imagem mais real e atual do átomo quântico (semelhante a uma nuvem de elétrons com um ponto ou núcleo mais central). E por que não funcionava fisicamente? Mesmo naquela época sabia-se que cargas elétricas em órbitas circulares como os elétrons deste modelo irradiariam energia continuamente e acabariam por colapsar no núcleo em movimento espiral. Quanto ao núcleo ser predominantemente positivo não havia dúvida.

Bohr (1885-1962), baseado nos estudos de Planck (1858-1947) e Einstein (1879-1955) sobre os “pacotes” de energia ou quanta, resolveu o problema em discussão na época: como os elétrons nos átomos possuem valores definidos de energia permitidos, não conseguem irradiar continuamente até cair no núcleo. Mostrou que quando o elétron muda de órbita ele ou absorve ou emite um fóton, e, portanto a energia se conserva se levamos em conta a energia do fóton.

O ápice dessas idéias acaba por fornecer ao mundo a partir da década de 20 do século passado a Teoria Quântica, fundamental no desenvolvimento tecnológico em que estamos inseridos. Porém, outra dúvida ainda restava: por que o núcleo atômico não se separava ou desintegrava se cargas iguais (prótons) se repelem? Em 1932 Chadwick (1891-1974) começa a responder a essa questão com a descoberta do nêutron. Esta é uma partícula sem carga e que está também no núcleo dos átomos junto aos prótons.

Surge em seguida uma explicação mais definitiva para essa pergunta através da teoria de uma nova interação entre as partículas do núcleo e que passou a ser chamado de força nuclear ou força forte, força esta atrativa entre os prótons positivos e os nêutrons, mas que impera e vence a repulsão entre as cargas iguais. Lembremos o que aprendemos em Ciências: cargas iguais se repelem e cargas diferentes se atraem, do mesmo modo que os pólos de dois ímãs. Esta força forte se juntava à já conhecida força gravitacional e a também já estudada força eletromagnética, compondo um cabedal teórico de grande importância na Física chamado de quatro forças fundamentais da natureza. A teoria de unificação de todas estas forças, aliadas a força nuclear fraca derivada da desintegração do núcleo atômico (ou radioativa) e assim chamada porque é considerada fraca em relação à anterior, foi a grande busca de Einstein por toda a sua vida e até o seu leito de morte quando ainda tentava uni-las em uma grande Teoria da Unificação. Einstein não obteve sucesso, e ainda hoje se busca uma Teoria que venha unir e explicar todas as quatro forças fundamentais conjuntamente.

Em 1930 Pauli (1900-1958) postula a existência de uma partícula de dificílima detecção ao estudar o decaimento radioativo: o neutrino. Hoje ele é bem conhecido e sabe-se que é capaz de atravessar a Terra vindo através dos confins do Universo sem “esbarrar” em nenhum átomo sequer. Origina-se em grandes quantidades em explosões de supernovas e nos chegam também nos raios cósmicos, partículas de altíssima energia de origem desconhecida. Logo, na década de 30, já se conhecia o elétron (e-), o próton (p+), o nêutron (n), e o neutrino (n), começando-se, assim, a formar um “modelo de partículas” na Física.

À medida que a tecnologia de aceleração de partículas foi se desenvolvendo novas descobertas foram feitas a partir das colisões de altíssima energia com o núcleo e medindo-se a carga elétrica, a massa e o spin (o momento angular intrínseco das partículas ou seu giro). Foram usadas letras gregas para representá-las surgindo, então, os hádrons tabelados.

Suspeitou-se então que tais partículas oriundas de colisões de altíssima energia e atuantes na força forte nuclear possuiriam outros componentes ainda menores para constituí-lo. E na década de 60, Murray Gell-Mann (1929-) propõe o quark, em três formatos ou padrões indivisíveis (como na idéia de Demócrito) e que, combinados, formariam os hádrons conhecidos até então citados acima. Foram nomeados os quarks up (u), down (d) e strange (s). Por exemplo, o próton descobriu-se ser constituído pela combinação de quarks u u d. Já o nêutron pelos quarks u d d. Importante ressaltar que os quarks nunca aparecem na natureza isoladamente; estão sempre combinados com outros quarks ou antiquarks. A Teoria que descreve as interações entre os quarks é chamada cromodinâmica quântica – QCD, em inglês.

Com a idéia dos quarks define-se um padrão de constituição para a matéria definida em duas grandes classes para a maioria das partículas, e que depois se especializou ou subdividiu-se ainda mais:


HÁDRONS: partículas não elementares, mas que são constituídas por outras ainda menores – os quarks. Os hádrons se subdividem em:

1. Mésons: partículas formadas por dois quarks, um quark e um antiquark. Exemplo: méson K+, composto por um quark up e um antiquark strange.

2. Bárions: partículas formadas por três quarks (ou antiquarks). Exemplo: prótons e nêutrons.


LÉPTONS: partículas elementares (indivisíveis), não formadas por quarks, e que não se combinam para formar hádrons, pois não sofrem força forte nuclear. Exemplos típicos: o elétron, o neutrino e o múon.

São denominados sugestivamente de sabores os nomes dos léptons e dos quarks. Até hoje se suspeita que a maior parte da matéria constituinte fundamental do universo seja composta de léptons e quarks up e down, partículas fundamentais. O mais famoso físico brasileiro, César Lattes (1924-2005), junto com outros cientistas detectou experimentalmente o chamado méson pi (ou píon). Durante a década de 60 e até a década de 90 novas partículas foram sendo acrescidas à classificação acima e comprovadas experimentalmente, inclusive com a participação de cientistas brasileiros, como no caso do quark top em 1994/95 no acelerador de partículas do Fermilab (EUA).

E como ficou o Modelo Padrão? Temos hoje em dia seis tipos de léptons e de quarks (ou seja, seis sabores para ambos), arrumados de acordo com a massa que possuem em ordem crescente:


Tabela 1.



As partículas de interação material em seu conjunto acima são também chamadas de férmions.


AS FORÇAS E AS PARTÍCULAS DE INTERAÇÃO

Na Física Moderna as forças ou interações são transmitidas pela troca de partículas mediadoras. As quatro forças descritas na primeira parte deste trabalho (forte, gravitacional, eletromagnética e fraca) utilizam-se delas. São elas:

1 – Força Gravitacional: Sabemos que quaisquer corpos com massa se atraem, como o Sol e a Terra. Mas até o momento o GRÁVITON não foi detectado experimentalmente e por isso a interação gravitacional não está incluída no modelo padrão descrito.

2 – Força Eletromagnética: Aqui está envolvida a carga elétrica que os corpos possuem. A partícula mediadora é o FÓTON.

3 – Força Forte: Força atrativa que age nos nucleons (partículas do núcleo atômico). É atrativa para todas as combinações de prótons e nêutrons. Age sobre os quarks, e a partícula mediadora chama-se GLÚON (nome cuja origem vem do inglês glue – cola). Os glúons (g) são dotados de uma propriedade chamada carga forte (ou cor na terminologia física) e que desempenha o papel similar ao da carga elétrica, podendo então interagir entre si.

4 – Força Fraca: é responsável pelo decaimento radioativo. Interage com os neutrinos (que não tem carga elétrica e talvez não possuam massa). As partículas mediadoras desta interação são os ainda procurados experimentalmente BÓSONS DE HIGGS, e partículas como W+, W-, Z0. As partículas responsáveis pela interação das forças são conhecidas por bósons.



Desta forma, a nova Física, ou a chamada Física Moderna, através do estudo das partículas que constituem a matéria, acabou por alicerçar todo o conhecimento tecnológico atual e do futuro que nos reserva.



LEITURA RECOMENDADA & BIBLIOGRAFIA

• Caruso, F. & Santoro, A.; Do Átomo Grego à Física das interações Fundamentais; Rio de Janeiro: AIAFEX; 1994.

• Brennan, R.; Gigantes da Física – Uma história da Física moderna através de oito biografias; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor; 1998.

• Natale, Adriano A. & Vieira, Cássio L.; O Universo sem Mistério – Uma visão descomplicada da Física contemporânea: do Big Bang às partículas; Rio de Janeiro: Ed. Vieira & Lent; 2003.



• Sites recomendados:


http://www.pbs.org/wgbh/nova/elegant/part-nf.html

http://timeline.aps.org

http://www.aventuradasparticulas.ift.unesp.br/



*Adílio Jorge Marques é professor de Física e História da Ciência da rede pública e particular de ensino do Rio de Janeiro. Pesquisador em História da Ciência no mundo luso-brasileiro e história das Tradições.

Religião e Cultura Religiosa

 Ivani de Araujo Medina*

A religião nos parece ser a mais complexa e conflitada das nossas manifestações culturais. Mas, não é bem assim.
No conjunto das medidas tomadas pela organização humana, visando à preservação dos seus grupos, o sentimento de pertinência do Homem aos deuses levou-o a cultuá-los num sistema marcado pela rigidez e pela precisão. A intenção de angariar simpatia desses seres superiores que teriam poder de determinação no destino humano, fez criar sistemas especiais que permitissem a comunicação do grupo com os deuses, por intermédio de algum ou alguns dos seus membros, se valendo da simbologia dos ritos.
Acredita-se que a preservação desse costume se faz para o bem das gerações passadas, presentes e futuras. O fenômeno da atividade religiosa se dá em separado das demais manifestações, em respeito a distancia existente entre o Homem e os seus criadores. Aliás, a palavra “santo” significa: separado. Portanto, mesmo cercada de todo o cuidado pela sua importância primordial, a religião é parte integrante da cultura de um grupo, e não a cultura dele.
Cultura pode ser compreendida como o modo com que os grupos criam suas soluções às próprias necessidades e constroem símbolos, tendo em vista a auto-preservação. Suas crenças, língua, representações, códigos, costumes, instituições, religião, arte, etc. conferem uma identidade àquele grupo e se relacionam com a produção, perpetuação e transmissão do saber, à qual todos indistintamente devem se enquadrar. Um sistema de símbolos compartilhados com que se interpreta a realidade e dá sentido a existência. Cultura é criação e responde ao dinamismo humano registrado pela história. Portanto, quando relacionamos ambos os conceitos religião e cultura primeiro, devemos observá-los separadamente.
Depois que o judaísmo projetou-se no ambiente religioso mundial, uma grande transformação se deu nesse contexto. O conjunto das divindades concebidas na Antiguidade, masculinas e femininas, especialmente, foi expurgado do cenário do misticismo ocidental devido ao monoteísmo judeu patriarcal. O deus dos judeus era um deus que reivindicava a criação da Humanidade e se colocava acima de todos os deuses se dizendo um deus ciumento.
O povo judeu havia se organizado de um modo diferente, ou seja, vivia debaixo de um rigoroso sistema político-religioso estruturado sob um arcabouço legal, alegadamente de origem divina e doado diretamente pelo seu deus ciumento que exigia o severo cumprimento das suas leis. O judaísmo não admitia a alternância do homem entre o momento sagrado e o momento profano, como ocorre nas religiões. Nele, o homem religioso não se aparta do compromisso com o seu deus.
A cultura judaica, no seu modelo de crença organizada, distingue-se, então, em importância das outras culturas por estar amarrada firmemente num pacote de cunho religioso, no qual a autoridade jurídica e religiosa era unificada e detinha o poder civil. Diferentemente, nas culturas onde a simples religião era praticada, esta, continuava submetida ao poder civil como as demais manifestações. Eis a diferença fundamental entre religião e cultura religiosa. Assim sendo, fica problemático classificar o judaísmo como religião. É uma cultura religiosa, certamente.
A cultura religiosa não é amistosa porque a sua natureza não permite. Quando ela se estabelece, a primeira providência é se livrar das religiões e dos adversários profanos porque as leis divinas têm validade eterna e exigem zelo. Por causa disso, os judeus formavam um grupo fechado, refratário a influências, que vivia nas mesmas cidades dos outros grupos, para os quais o momento sagrado e o profano eram claramente perceptíveis em suas vidas. Por isso o judaísmo era um estilo de vida que não se envolvia com os demais.
O modelo judeu foi copiado pelos gregos em função de uma disputa pela hegemonia cultural no mundo antigo. Dele surgiu o cristianismo e, do cristianismo, o islamismo. A conclusão é que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo nunca foram simples religiões vitoriosas, como se pensa. São culturas religiosas e nasceram de um austero projeto político-religioso a se executar. Com efeito, é inadequado pensar-se em suas modernizações, pois o conceito de legalidade que os inspirou é eterno. As leis divinas mudarão jamais.
As culturas religiosas podem comportar diversas religiões derivadas de si mesmas, vários filhotes, por assim dizer. O cristianismo é o seu maior exemplo nesse sentido.
A distinção entre religião e cultura religiosa se faz necessária, inclusive, porque o saldo negativo que esta última deixou na história da Humanidade deve ser creditado a quem de direito.

*Pesquisador da história do cristianismo


Referências
ALIADE, Mircea, O sagrado e o profano. [tradução Rogério Fernandes] São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JOHNSON, Paul. História dos judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
LARAIA, Roque de Barros, Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
TOYNBEE, Arnold J., A Religião e a história. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.